Os contratos de rateio de despesas (cost sharing agreements) são instrumentos amplamente utilizados por grupos econômicos com o objetivo de racionalizar e otimizar os custos relacionados a atividades de suporte administrativo (backoffice), como, recursos humanos, contabilidade e tecnologia da informação.
Por meio desses contratos, uma das empresas do grupo atua como centralizadora dos custos e despesas relacionados a essas atividades secundárias, sendo posteriormente reembolsada pelas demais entidades pela parcela das despesas que lhes beneficiaram. Trata-se de um modelo de gestão eficiente e recorrente, que visa à redução de custos e à maximização dos resultados consolidados do grupo econômico.
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Ao longo dos anos, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e determinadas Soluções de Consulta fixaram determinados critérios que devem ser seguidos para que a validade e legitimidade desses contratos sejam reconhecidas[1].
Contudo, ao mesmo tempo, a adoção dessa prática também tem sido objeto de controvérsia entre os contribuintes e a Receita Federal, especialmente quanto a dois aspectos centrais:
- a dedutibilidade das despesas incorridas com o reembolso à entidade centralizadora pelas despesas incorridas em benefício do contribuinte; e
- na perspectiva da entidade centralizadora, a tributação dos valores recebidos a título de reembolso.
Recentemente, em 18/3/25, a RFB publicou Solução de Consulta analisando o tratamento fiscal que deve ser conferido a remessas ao exterior realizadas no contexto de contratos de rateio de despesas (cost sharing agreements).
De acordo com a Solução de Consulta Cosit 39, de 18/3/2025 (SC Cosit 39/2025), essas remessas estão sujeitas à tributação pelo IRRF, Cide e PIS/Cofins-Importação, ainda que destinadas ao simples reembolso de parte relacionada estrangeira por despesas e custos incorridos no âmbito de contratos de rateio, sem a inclusão de margem de lucro.
Segundo a SC Cosit 39/2025, incide IRRF, Cide e PIS/Cofins-Importação “sobre os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a título de remuneração de residente ou domiciliado no exterior decorrente de contratos de compartilhamento de custos de serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes (cost sharing agreement) entre empresas do mesmo grupo econômico”.
Nessa ocasião, a RFB examinou situação na qual empresa brasileira, controlada por sociedade francesa, efetuava remessas à sua controladora para reembolsá-la por “despesas e os custos com salários dos contadores, dos advogados e dos colaboradores do setor administrativo, que beneficiam todo o grupo econômico”, sem margem de lucro e com base em contrato de rateio específico.
Em linhas gerais, a conclusão da RFB pela incidência de tributos sobre essas remessas se baseou na premissa de que esses valores, mesmo sem margem de lucro, configurariam remuneração pela importação de serviços técnicos e de assistência administrativa.
Especificamente com relação ao IRRF e à Cide, a RFB entendeu que:
- “a existência ou não de cobrança de margem de lucro na precificação dos serviços prestados no âmbito do contrato em apreço é irrelevante para efeitos da incidência da Cide e do IRRF”; e
- “Seja a precificação da operação feita com a imposição de margem ou não, trata-se de remuneração e sobre a remessa temos tanta a incidência da Cide como do IRRF”.
Em relação ao PIS e à Cofins-Importação, a RFB estabeleceu que “a Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e a Cofins-Importação incidem sobre importações que se subsumam a suas hipóteses de incidência, inclusive no caso de operações realizadas no âmbito de acordos de repartição de custos e despesas, em quaisquer de suas modalidades”.
O posicionamento adotado repete argumentos já presentes em soluções de consulta anteriores, como a Solução de Consulta Cosit 43, de 26/2/2015 (SC Cosit 43/2016) e a Solução de Consulta Cosit 50, de 5/5/2016 (SC Cosit 50/2016). Nessas manifestações, a RFB sustentou que, independentemente da existência de lucro, a centralização de despesas, com o posterior recebimento de reembolso das entidades beneficiadas, representa prestação de serviços tributável como tal[2].
Como se pode notar, o posicionamento da RFB está pautado em duas premissas principais:
- os valores remetidos ao exterior a título de reembolso, ainda que sem a inclusão de margem de lucro, correspondem à remuneração; e
- estão relacionados à contratação de serviço (técnico e de assistência administrativa, por exemplo).
No entanto, apesar da posição firmada pela RFB, há argumentos jurídicos sólidos que respaldam a não incidência de tributos sobre essas remessas.
Em relação à primeira premissa adotada pela RFB, não é possível equiparar o simples reembolso, sem margem de lucro, à figura da remuneração. O ressarcimento de custos configura mera recomposição patrimonial, não implicando acréscimo à entidade estrangeira.
A bem da verdade, os valores remetidos ao exterior a título de reembolso visam apenas a restituir à empresa centralizadora os valores que ela desembolsou em benefício do contribuinte.
Remuneração, por definição, implica acréscimo patrimonial, margem de lucro ou ganho. No rateio, a empresa reembolsada retorna ao ponto de equilíbrio financeiro (zero a zero), o que afasta a própria materialidade necessária para a incidência do IRRF, da Cide e do PIS/Cofins-Importação.
Na ausência de acréscimo de margem de lucro nas remessas ao exterior, não existe a figura da remuneração no contrato de rateio de despesas, havendo apenas uma repartição de despesas que foram incorridas pela entidade estrangeira em benefício de outras entidades do mesmo grupo econômico. Trata-se de mera recuperação de custos, que não pode ser confundida com o conceito de remuneração, que está invariavelmente atrelado ao auferimento de acréscimo/lucro.
A própria RFB, em Soluções de Consulta anteriores, já reconheceu que os valores recebidos por pessoa jurídica brasileira centralizadora de atividades compartilhadas como reembolso das demais entidades do grupo não integra a base de cálculo do PIS e da Cofins[3] – raciocínio que também deveria ser aplicado a remessas ao exterior a título de reembolso.
Em relação à segunda premissa adotada pela RFB na SC 39/2025, o cost sharing não se confunde com uma relação de prestação de serviços.
O contrato de prestação de serviços é regulado pelo Código Civil (artigos 593 a 609) e pressupõe onerosidade, sendo lastreado pela emissão de notas fiscais e podendo abranger tanto atividades-fim quanto atividades-meio. O contrato de rateio de despesas (cost sharing), por sua vez, é um contrato atípico, respaldado por notas de débito e sendo limitado a atividades-meio das entidades envolvidas.
Não há no contrato de rateio de despesas, portanto, uma relação bilateral de prestação de serviços com contraprestação onerosa. O que existe é um acordo entre empresas relacionadas para o compartilhamento proporcional de custos administrativos comuns, sem o pagamento de margem de lucro à entidade centralizadora desses custos, o que descaracteriza a ocorrência de uma prestação de serviço.
Assim, os valores pagos pelo contratante do serviço correspondem à remuneração auferida pelo prestador, ao passo que os valores remetidos ao exterior no âmbito de um contrato de rateio de despesas têm como única finalidade reembolsar a parte estrangeira pelas despesas e custos incorridos em benefício da entidade brasileira, e não a de remunerar ou conferir margem de lucro à parte estrangeira, não podendo ser equiparados à remuneração dessa entidade (como já reconhecido pelo Carf)[4].
Nesse contexto, apesar de existirem decisões em ambos os sentidos, é importante ressaltar que o Carf já reconheceu que não há prestação de serviços ou pagamento de preço em um contrato de rateio de despesas[5].
A esse respeito, cabe mencionar o voto proferido pela conselheira Edeli Bessa Pereira no Acórdão 1402-003.864, de 16/4/2019, ocasião na qual restou estabelecido que:
- “No caso dos autos [contrato de cost sharing], inexiste conteúdo econômico, tendo em vista que o valor recebido é a título de ressarcimento de custo, proveniente essencialmente da atividade-meio. Inexiste a figura de preço”; e
- “Considerando as definições e as características técnicas do conceito de ‘receita’, não há como confundi-Ia com o conceito de ressarcimento de custos”.
Dessa maneira, o entendimento manifestado pela RFB na Solução de Consulta mais recente sobre o assunto pode ser questionado, principalmente, a partir da distinção entre remuneração e reembolso.
Quando não há margem de lucro, a operação não configura acréscimo patrimonial à empresa estrangeira, mas mera recomposição de valores. Logo, não haveria a ocorrência do fato gerador de tributos como o IRRF, a Cide, o PIS e a Cofins-Importação, que pressupõem uma remuneração.
Além disso, o contrato de cost sharing possui natureza distinta do contrato de prestação de serviços. Enquanto este último é regulado pelo Código Civil e está relacionado à contraprestação onerosa, o contrato de rateio de despesas é um contrato atípico, lastreado por notas de débito e restrito a atividades-meio do grupo, sem finalidade lucrativa.
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Nesse cenário, apesar de recente, a SC Cosit 39/2025 reafirma uma postura que ignora a natureza jurídica específica dos contratos de rateio de despesas. A exigência de tributos sobre essas remessas, sem considerar a ausência de lucro e a finalidade do reembolso, coloca em risco a segurança jurídica de grupos econômicos multinacionais que adotam práticas legítimas de gestão compartilhada de custos.
É preciso diferenciar remuneração de reembolso e reconhecer a atipicidade e licitude do contrato de cost sharing. Em um contexto de globalização e racionalização empresarial, a simples centralização de despesas administrativas não deveria ser tratada como importação de serviços, sob pena de comprometer a competitividade e a previsibilidade tributária das empresas brasileiras inseridas em grupos internacionais.
[1] Método de rateio definido em acordos formulados de forma clara e celebrados com antecedência; acordos aplicados de forma contínua, uniforme e consistente; custos e despesas relacionados às atividades compartilhadas contabilizados e registrados de acordo com as normas contábeis aplicáveis; reembolso das despesas efetuado por meio de notas de débito (e não por notas fiscais); inexistência de remuneração, margem de lucro ou preço, havendo mero reembolso à centralizadora pelas despesas incorridas em benefício das outras entidades; e rateio somente dos custos e das despesas referentes a atividades administrativas ou de suporte (atividades de backoffice), não havendo o compartilhamento de despesas relativas às atividades-fim das entidades envolvidas. (e.g. Solução de Consulta nº 8, de 1º.11.2012; Solução de Consulta nº 23, de 23.9.2013 e Solução de Consulta nº 94, de 29.3.2019).
[2] SC Cosit 43/2016: (A) “No caso da presente consulta, os pagamentos que a Consulente faz a sua Controladora pelos serviços cujos custos são compartilhados por contrato de cost-sharing estão remunerando, ainda que indiretamente e ainda que sem a obtenção de lucro pela Controladora, os serviços de que se beneficia a Consulente”; (B) “Com efeito, a circunstância de o efetivo prestador do serviço (seja funcionário da Controladora, seja terceiro contratado) ser pago pela Controladora e esta não auferir qualquer lucro nas operações objeto de compartilhamento de custos, não têm o condão de afastar a incidência da Cide por ocasião do pagamento ou remessa da consulente à Controladora pelos serviços técnicos prestados”; e (C) “Ademais, a legislação do Imposto sobre a Renda, de aplicação subsidiária, como se viu, no que concerne à Cide, estatui que “a incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção” (art. 43, § 1º da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, Código Tributário Nacional – CTN, grifou-se). É dizer, a denominação de reembolso ou rateio de custos não elide o fato de que se está fazendo pagamento a residente ou domiciliado no exterior em contrapartida de serviços técnicos prestados (…)” (não destacado no original).
SC Cosit 50/2016: “(…) mesmo no âmbito de acordos de repartição de custos e despesas (em qualquer de suas modalidades), haverá a incidência da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação caso ocorram suas hipóteses de incidência, independentemente da natureza jurídica da operação que ensejou a importação e dos efeitos decorrentes da operação no patrimônio da pessoa jurídica nacional ou estrangeira”.
[3] Solução de Divergência Cosit nº 23, de 23.9.2013: “(…) Relativamente à Contribuição para o PIS/Pasep e à Cofins, observadas as exigências estabelecidas no item anterior para regularidade do rateio de dispêndios em estudo: a) os valores auferidos pela pessoa jurídica centralizadora das atividades compartilhadas como reembolso das demais pessoas jurídicas integrantes do grupo econômico pelo pagamento dos dispêndios comuns não integram a base de cálculo das contribuições em lume apurada pela pessoa jurídica centralizadora”. O mesmo entendimento foi manifestado na SC Disit nº 4, de 18.3.2021.
[4] “RATEIO DE DESPESAS ENTRE EMPRESAS DO MESMO GRUPO. O fato de a unidade centralizadora dos custos e despesas receber das unidades descentralizadas as importâncias que inicialmente suportou, em benefício destas, não configura receita, mas simplesmente reembolso dos valores adiantados.” (Carf – Acórdão nº 1402-003.864, de 16.4.2019)
[5] “PIS/PASEP-IMPORTAÇÃO. REEMBOLSO DE DESPESAS. NÃO INCIDÊNCIA. Na hipótese dos autos ocorreu mero reembolso de despesas e não remuneração por prestação de serviços, o que faz com que não incida a Contribuição para o PIS/PASEP. Pela Solução de Consulta COSIT 378/2017 é possível perfilhar o entendimento de que quando a remuneração por pessoa jurídica domiciliada no Brasil a sócio administrador ou profissional expatriado residente no País, com pagamento no exterior realizado por sua matriz ou por empresa do mesmo grupo empresarial domiciliada no exterior, as remessas ao exterior a título de reembolso não deverão ser tributadas.” (…)“O reembolso de despesas, pela sua própria natureza não possui fins econômicos, ou seja, não se destina a uma contraprestação ou remuneração de serviços. Se serviço tivesse sido prestado à Requerente, tal, obviamente, visaria o lucro, o que não é o caso ora em análise.” (Carf – Acórdão nº 3301-004.633 sessão de 19.4.2018 – não destacado no original)
“CIDE. REEMBOLSO DE DESPESAS. OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE FINS ECONÔMICOS E DE LUCRO. INOCORRÊNCIA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. VERDADE MATERIAL. SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT 378/2017. Na hipótese dos autos ocorreu mero reembolso de despesas e não remuneração por prestação de serviços, o que faz com que não incida a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE.”(…) Para a incidência de CIDE conforme previsto no texto legal, necessária a prestação de um serviço, exigindo atividade econômica, ínsita nessa definição, a nosso ver, o fim de obtenção de lucro, o que não se vislumbra na hipótese em apreço de reembolso de despesas.(…) Não há como se confundir os institutos de “reembolso” e “prestação de serviços”, dado possuírem naturezas jurídicas distintas (…)”
“COMPARTILHAMENTO DE CUSTOS. GLOSA. COMPROVAÇÃO. No convênio de compartilhamento de bens, uma das entidades que possui a estrutura material e/ou de bens imateriais permite que outra(s) também se utilize(m) de tal estrutura, evitando-se sua duplicidade. Por isso não há responsabilidade civil pela execução de atividades: não há prestação de serviços, nem preço. Os critérios para o rateio dos custos podem se dar por meio da imputação direta ou indireta de custos, ou pela combinação de ambos, segundo metodologia técnica.” (Carf – Acórdão nº 1103-001.044, de 6.5.2014 – não destacado no original).