Entre incentivos e restrições: reflexões sobre o Propag

A análise da situação financeira e fiscal, bem como do risco para provimento de crédito dos entes subnacionais no Brasil, está intrinsecamente ligada a marcos normativos que buscam assegurar a responsabilidade fiscal e a sustentabilidade das finanças públicas.

Esse complexo emaranhado regulatório é formado por instrumentos, no qual destacam-se a Capacidade de Pagamento (Capag) e programas de ajuste fiscal como o PAF, RRF, PATF e PEF[1], além do recém-instituído Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag), criado pela Lei Complementar 212/2025.

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Embora esses instrumentos tenham ampliado o controle e transparência do endividamento dos entes federativos, ainda carecem de maior integração, flexibilidade e capacidade analítica para atender plenamente às demandas deste ambiente fiscal complexo e em constante transformação. Nesse contexto, os marcos supracitados apresentam diversas limitações, especialmente em um ambiente de heterogeneidade fiscal e econômica entre os entes federativos.

Foi na busca de estimular o investimento em infraestrutura diante do endividamento dos estados brasileiros, ao oferecer melhores condições para o pagamento e alongando os prazos das dívidas estaduais que o Propag foi criado. Em contrapartida aos benefícios concedidos, o programa exige amortização extraordinária de saldos devedores, limitação do crescimento das despesas primárias e vinculação de investimentos a projetos específicos.

De acordo com o Propag, os estados que obtiverem qualquer tipo de benefício – como suspensão, postergação ou redução extraordinária de dívidas com a União – deverão, no prazo de até 12 meses após a assinatura do aditivo contratual, limitar o crescimento de suas despesas primárias à variação do IPCA, acrescida de: 0% se não houver aumento real de receita primária; 50% da variação real positiva da receita se o resultado primário tenha sido nulo ou negativo; ou 70% da variação real positiva da receita se o resultado primário tenha sido positivo.

Entretanto, a limitação do crescimento das despesas primárias considerando exclusivamente à evolução da receita, ainda que ajustada pelo resultado fiscal, não reflete adequadamente a real situação de saúde financeira dos entes. Esse critério ignora variáveis estruturais fundamentais, como o nível de endividamento, a disponibilidade de caixa e a composição da despesa pública.

Dessa forma, em períodos de crescimento atípico da receita — como ocorreu recentemente, impulsionado pela inflação elevada e receitas extraordinárias[2] —, esse critério pode induzir uma falsa percepção de solidez fiscal, mascarando vulnerabilidades que comprometem a sustentabilidade financeira no médio e longo prazo.

Assim, apesar dos avanços que o Propag apresenta em termos de opções de renegociação de dívidas, o programa traz limitações importantes. A principal crítica reside na ausência de diferenciação adequada entre entes com distintas realidades fiscais. Estados com histórico de disciplina financeira, baixo endividamento e capacidade de investimento, não recebem reconhecimento proporcional no desenho do programa. A diferenciação estritamente pela variação da receita primária não é suficiente para refletir a real situação fiscal dos entes.

Esse desenho uniforme cria um efeito perverso: para ter acesso a condições melhores de pagamento de dívida, estados que historicamente mantiveram sua capacidade de investimento e seus indicadores fiscais em níveis sustentáveis, acabam sujeitos às mesmas exigências e restrições impostas aos entes em situação fiscal crítica.

Além disso, as contrapartidas exigidas — como a imposição de teto para despesas primárias, a vinculação de investimentos a projetos específicos e a publicação de balanços semestrais com pareceres técnicos dos Tribunais de Contas — podem representar barreiras à adesão, especialmente para estados em melhor situação fiscal.

Para esses entes, a limitação no crescimento de despesas, que inclui os investimentos, limita a ampliação de projetos estratégicos essenciais ao desenvolvimento econômico e social, como a construção de infraestrutura, a melhoria do saneamento, e a expansão da rede de escolas e hospitais. Assim, paradoxalmente, o programa pode desestimular justamente aqueles que têm maior capacidade de impulsionar investimentos estruturantes, contrariando o objetivo central de dinamizar o crescimento sustentável.

Outro elemento relevante do desenho do Propag é a criação do Fundo de Equalização Federativa, financiado pelos estados aderentes com parte dos recursos economizados na renegociação. A distribuição dos valores será realizada com base em dois critérios: 80% alocados conforme o coeficiente de participação no Fundo de Participação dos Estados (FPE) e 20% destinados de acordo com a relação inversa entre a dívida consolidada e a receita corrente líquida de cada ente.

Essa lógica de redistribuição que o Fundo contempla pelo critério do FPE, revela um dilema adicional. A dinâmica do Propag assemelha-se ao clássico dilema do prisioneiro: a atratividade do Fundo de Equalização Federativa depende fundamentalmente da adesão dos entes com maior peso relativo na dívida pública subnacional, que representam parcela mais significativa da composição do fundo, como São Paulo.

Desta forma, para que os estados com menor endividamento possam receber um volume considerável de recursos, é necessário que aqueles com maiores economias de juros na renegociação também contribuam de maneira expressiva. Contudo, a adesão desses entes com maior peso relativo só é razoável se houver benefícios proporcionais ao seu esforço e ao volume de dívida renegociada, o que levanta questionamentos sobre o equilíbrio da estrutura de incentivos desenhada pelo Propag.

Se esses grandes contribuintes optarem por não aderir — diante das restrições impostas e da ausência de vantagens diretas —, a atratividade do programa para os demais entes se reduz consideravelmente, comprometendo a efetividade do Fundo e do próprio Propag.

Em um cenário no qual os estados têm assumido o protagonismo do investimento público, investindo proporcionalmente mais que a União em relação à própria Receita Corrente Líquida, o contexto fiscal vigente caminha na direção oposta. Estados e municípios enfrentam crescente restrição para acessar crédito e financiar novos investimentos.

O espaço fiscal limitado, somado pelas regras de endividamento e pela classificação Capag, frequentemente resulta em barreiras relevantes ao financiamento de projetos de infraestrutura, comprometendo a capacidade de dinamizar o desenvolvimento econômico e social em âmbito local.

Também é importante mencionar a multiplicidade de programas fiscais existentes — PAF, RRF, PATF, PEF e Propag — que, embora não exijam integração direta, refletem a volatilidade e complexidade do arcabouço normativo brasileiro, o que impacta diretamente a eficiência e a aderência dos entes subnacionais às diretrizes fiscais estabelecidas pela União.

Em um curto espaço de tempo, esses instrumentos vêm sendo substituídos ou reformulados, o que revela a dificuldade de consolidação de políticas fiscais sustentáveis no país. Essa dispersão também prejudica a gestão integrada da política fiscal, dificultando a coordenação federativa.

Diante desse contexto, observa-se que o Propag, embora represente uma oportunidade de alívio financeiro e reorganização das contas públicas para muitos estados em situação fiscal severa, reproduz um padrão recorrente nos instrumentos de regulação fiscal: a adoção de critérios uniformes que desconsideram as especificidades regionais e a diversidade das situações fiscais dos entes federativos.

Reconhecendo a importância do debate federativo e da necessidade de soluções que respeitem essa pluralidade, é fundamental que instrumentos como o Propag evoluam para promover um equilíbrio fiscal sustentável, indo além da simples imposição de limites.

A construção de um ambiente fiscal sólido e duradouro exige a criação de mecanismos que incentivem e reconheçam a boa gestão, a responsabilidade fiscal e a capacidade de investimento público, fortalecendo a autonomia financeira dos estados com responsabilidade e preservando sua capacidade de impulsionar o desenvolvimento econômico e social de forma equilibrada entre as unidades da Federação.


[1] Programa de Reestruturação e de Ajuste Fiscal (PAF), instituído pela Lei nº 9.496/1997, reformulado pela Lei Complementar nº 156/2016; Regime de Recuperação Fiscal (RRF), instituído pela Lei Complementar nº 159/2017; Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal (PATF) e o Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal (PEF), ambos estabelecidos pela Lei Complementar nº 178/2021.

[2] Ver detalhes em: DEDA, C. C.; MARQUES, J. C. S. ; CARVALHO, C. M. D. S.; DE PAULA, S. M.  A mudança da trajetória fiscal dos estados brasileiros. Revista Economistas, v.50, p. 40 – 49, out-dez 2023.

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