Há mais de duas décadas a terceirização de serviços no âmbito público tem sido tema de julgamento junto aos tribunais superiores. A primeira consolidação ocorreu com a revisão da Súmula 331 do TST para prever a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços (Resolução 96/2000), inclusive quando este fosse Administração Pública.
Iniciou-se, assim, grande embate judicial entre os juslaboralistas em defesa do princípio da proteção do trabalhador em face dos advogados públicos em defesa do princípio do interesse público, especialmente o da legalidade e da ampla concorrência licitatória.
Após dez anos dessa decisão, sobreveio a primeira manifestação erga omnes do Supremo Tribunal Federal (ADC 16), reconhecendo a constitucionalidade do artigo 71, §1º, da Lei 8.666, para vedar a transferência automática de responsabilidade pelos créditos trabalhistas ao tomador público.
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No julgamento do Tema 246, em 2014, foi reafirmado que “a responsabilização subsidiária do poder público não é automática, dependendo de comprovação de culpa in eligendo ou culpa in vigilando” e, nos seus embargos de declaração, foi ainda firmada a “inarredável obrigação da administração pública de fiscalizar os contratos administrativos firmados sob os efeitos da estrita legalidade”. [1]
Em 2019, a Subseção de Dissídios Individuais I do TST julgou embargos para concluir que “é do Poder Público, tomador dos serviços, o ônus de demonstrar que fiscalizou de forma adequada o contrato de prestação de serviços.” (E-RR-925-07.2016.5.05.0281).
O embate judicial não arrefeceu, uma vez que o entendimento que se consolidava na Justiça do Trabalho é que, ocorrendo débito trabalhista, houve falha na fiscalização. A necessidade de proteção do trabalhador ignorava que a fiscalização, como obrigação de meio que é, previne e reprime infrações, mas não é capaz de impedi-la por completo.
Exemplificativamente, pode-se citar o atendimento do direito elementar do trabalhador na relação de emprego que é o recebimento de salário. Vejamos um exemplo, o direito elementar do trabalhador na relação de emprego é o recebimento do salário. Segundo o artigo 459 da CLT, o pagamento deste deve ocorrer até o quinto dia útil.
A fiscalização estatal vai demandar a comprovação de pagamento do salário e, acaso descumprido, atuará com notificações e penalidades. Contudo, nenhuma atuação impedirá efetivamente que o atraso ocorra pois só quando este ocorre é possível a atuação pública, até o prazo de pagamento, o empregador está no seu legitimo direito de gestão.
Seguia-se, portanto, o embate judicial, tornando em muitos tribunais do trabalho os entes públicos os maiores litigantes.
No RE 1.298.647, o Supremo Tribunal Federal enfrentou questão infralegal referente ao ônus da prova à luz dos artigos 5º, II, 37, XXI e § 6º, e 97 da Constituição Federal, ensejando no Tema 1.118. A primeira premissa reafirmada pelo Supremo é o dever de fiscalização do tomador público de serviços. Tal obrigação, debatida em âmbito judicial, já se refletia na nova Lei de Licitações (artigo 121, §2º, Lei 14.133/21).
A lei afirma que a responsabilidade subsidiária trabalhista ocorrerá quando houver falha da fiscalização, novamente seguindo o quanto já apontado pelo Supremo.
Os ministros adentraram em aspectos precisos do embate havido no âmbito de Direito Público, tendo o ministro José Roberto Barroso afirmado: “ressalto que a obrigação da Administração Pública de fiscalizar as empresas contratadas é uma obrigação de meio e não de resultado.”
Então, o que precisa ser provado e por quem para que haja responsabilização?
O item 1 da tese[2] deixa claro que o objeto de provado não é a fiscalização, mas a sua falha. E como esta está diretamente ligada ao débito havido pelo trabalhador, cabe a este estabelecer o liame entre a falha e o débito. A definição pareceu surpreender os juslaboristas por tangenciar uma prova negativa da fiscalização.
Contudo, não é novidade no âmbito do Direito Administrativo. O Tema 826, acerca da fixação de preços no setor sucroalcooleiro, e o Tema 366, acerca do comércio de fogos de artifício, trilharam, dentre tantos outros julgados, a análise dos requisitos de responsabilidade da Administração Pública no seu dever fiscalizatório, fixando o ônus a quem demanda.
O STF seguiu sendo cirúrgico e definiu no item 2[3] a conduta negligente da Administração Pública acerca do seu dever de fiscalização. Reafirmou o julgado o quanto previsto no artigo 123 da nova Lei de Licitações. O trabalhador, verificando que seu direito está sendo descumprido pelo empregador, tem a possibilidade de manifestar-se perante a Administração Pública.
Importante destacar aqui que a notificação deve ser formal, o que atende ao princípio administrativo de impessoalidade e formalidade dos atos públicos. Por ”formal” entendem os ministros do STF a notificação que atende ao objetivo de comunicar a falha, não havendo a necessidade de fundamentar. Nesse contexto, tenho que é possível à Administração Pública a disponibilização de canal oficial para tais comunicações.
O item 3[4] não trouxe novidades e reafirma a jurisprudência do TST ao estabelecer que saúde e segurança do trabalho em ambiente público ou apontado como obrigatório pelo contratante público devem ser por este diligenciado atentamente. A surpresa foi a fundamentação nas previsões da Lei 6.019/74. Referida normativa tem como destinação originária os serviços temporários, os quais são cadastrados junto ao Ministério do Trabalho e Emprego. Na reforma trabalhista, sofreu alterações para prever acerca de empresas de serviços terceirizados nas relações privadas.
No item 4[5], o julgamento foi além na aplicabilidade da referida lei e estabeleceu novo requisito para a contratação pública. Estabeleceu o julgado que a contratação pública deveria verificar o capital social integralizado da contratada, de modo a ser compatível com o número de empregados, nos termos da Lei 6.019/74. Veja-se que o artigo 31, §2º, da Lei 8.666/93 e o artigo 69, §4º, da Lei 14.133/21 estabelecem a possibilidade de a licitação prever requisitos de capital ou patrimônio líquido mínimo.
O STF tem entendimento consolidado acerca da competência da União para fixação das normas gerais licitatórias, que ocorre pela Lei 14.133/21, e dos demais entes federativos pela competência suplementar para legislar sobre licitação e contratação, desde que respeitadas as normas gerais estabelecidas pela União (ADI 4.658). Estabelecida a faculdade de critério, em norma especifica acerca da contratação pública, cabe ao ente federativo a escolha do seu critério e a forma de verificação[6].
Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União[7] declara a anulação de editais que previam o capital social mínimo como requisito à contratação pública por considerá-la excessiva à normatização. A Administração estava, portanto, limitada sob o ponto de vista da licitação a exigir tal requisito.
Ainda que se aceitasse a aplicabilidade da lei federal inespecífica acerca da contratação entre pessoas jurídicas privadas (artigo 4-A, Lei 6.019), verificaríamos que o artigo 4-B estabelece requisitos de funcionamento da empresa de serviços terceirizados, o que deve ser fiscalizado na concessão de autorização para funcionamento e não contrato a contrato.
O artigo 19-A da referida legislação aponta que o descumprimento de suas regras sujeita o infrator à multa na forma dos regramentos da Consolidação das Leis do Trabalho, indicando, portanto, que a fiscalização seria exercida pela Superintendência do Trabalho.
Soma-se a isso que o artigo 4-B da Lei 6.019/74 não impõe a comprovação da integralização do capital social. A regra em questão apenas indica o capital social compatível ao número de empregados. O tempo da integralização é matéria de Direito Empresarial, que comporta ajuste entre os sócios da empresa. Não estando previsto na lei o dever de estar integralizado, extrapola o julgamento e exige atos não demandados pela lei.
Superado as incongruências sistêmicas supra, o artigo 19-B do normativo em análise aponta que suas regras não se aplicam às empresas de vigilância. Pois bem, os dois principais serviços terceirizados pela Administração Pública são limpeza e vigilância. O julgamento do Tema 1.118 não tem restrição de objeto contratual, de modo que aplicar-se-ia à vigilância inclusive. E por que vigilância não está abrangida pela Lei 6.019? Porque tem regramento próprio na Lei 14.967/24 (art. 14), o qual é fiscalizado pela União (artigo 10, Portaria DG/Polícia Federal/18.045/23).
Para concluir o julgamento, o item 4-II torna uma faculdade legal em obrigação. O artigo 121, §3º, da Lei 14.133/21 estabelece “poderá, entre outras medidas” já o julgado expressa “deverá adotar medidas”. Aquilo que o legislador fixou como faculdade, o julgador transformou em obrigação. Felizmente, foi mantida a expressão “tais como” de modo que a escolha entre as cinco opções segue a critério do administrador público.
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O julgamento do Tema 1.118 pelo Supremo Tribunal Federal deve ser celebrado por trazer segurança a tantos litígios que povoam o Judiciário trabalhista. Alguns pontos podem ainda ser melhorados, em especial a aplicabilidade de legislação geral federal que se diz inaplicável à vigilância e a usurpação da conveniência fixada na Lei de Licitações. De todo modo, é certo que novas obrigações foram fixadas no julgado e que o uso do tempo futuro deve se refletir em modulação dessas novas obrigações.
Inegável que sempre podemos melhorar o serviço público, cuja orientação a advocacia pública realiza em defesa dos estados, mas também é certo que precisam ser melhor estruturadas as relações do trabalho. Maior que o número de litígios por responsabilidade subsidiária do tomador público na Justiça do Trabalho é o número de demandas por verbas rescisórias[8]. O Estado não pode ser fiador universal dessa conta.
A segurança jurídica com a clareza das obrigações possibilita a melhor orientação da Administração Pública com vistas a resguardar o princípio do interesse público sem descurar o princípio da proteção do trabalhador.
[1] No Estado do Rio Grande do Sul, o Decreto Estadual nº 52.215 de 30 de dezembro de 2014 estabelece o rito fiscalizatório.
[2] Não há responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviços contratada, se amparada exclusivamente na premissa da inversão do ônus da prova, remanescendo imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ele invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público.
[3] Haverá comportamento negligente quando a Administração Pública permanecer inerte após o recebimento de notificação formal de que a empresa contratada está descumprindo suas obrigações trabalhistas, enviada pelo trabalhador, sindicato, Ministério do Trabalho, Ministério Público, Defensoria Pública ou outro meio idôneo.
[4] Constitui responsabilidade da Administração Pública garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato, nos termos do art. 5º-A, § 3º, da Lei nº 6.019/1974.
[5] Nos contratos de terceirização, a Administração Pública deverá: (i) exigir da contratada a comprovação de capital social integralizado compatível com o número de empregados, na forma do art. 4º-B da Lei nº 6.019/1974; e (ii) adotar medidas para assegurar o cumprimento das obrigações trabalhistas pela contratada, na forma do art. 121, § 3º, da Lei nº 14.133/2021, tais como condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas do mês anterior.
[6] O Estado do Rio Grande do Sul tem normativa própria no Decreto nº 57.154/23 para avaliação da capacidade financeira (patrimônio líquido).
[7] TCU, Acórdão 610/2025, plenário.
[8] O painel da Justiça em Números (https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/painel-estatisticas/) aponta para 7,15%de processos para os grandes litigantes da Justiça do trabalho sob o segmento ”Administração Pública, Defesa e Seguridade Social”, sendo 504.391 processos pendentes com esses litigantes; já sob o âmbito de assuntos os cinco primeiros apontam todos para verbas rescisórias (assuntos 14000, 13998, 13994, 13999 e 13970), indicando 4.985.795 de processos pendentes .