A proposta inexequível é aquela que não é revestida de condições para que seja executada sem que sejam gerados, ao proponente, ônus superiores às vantagens[1].
Na prática, é desafiador para a Administração Pública que seja identificado, com segurança, o limite efetivo e preciso de descontos que remove a exequibilidade de uma proposta, uma vez que o processo de circulação de informações entre os agentes econômicos dá-se, necessariamente, de forma assimétrica.
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A assimetria pode se operar em graus ou níveis distintos caso-a-caso, mas sempre irá acontecer.
Em licitações, os particulares tendem a ser os detentores da maior parte das informações sobre os próprios negócios (custos fixos e variáveis, volume de demanda, vantagens competitivas etc.).
O poder público, quando nessas circunstâncias, nem sempre terá aptidão para o exercício seguro de avaliação sobre se o preço ofertado reúne condições de ser cumprido sem o comprometimento da execução do serviço ou da qualidade do produto.
O legislador pretendeu mitigar os efeitos desse problema. A Lei 14.133/2021 estabelece que propostas com valores inferiores a 75% do valor orçado pela Administração hão de ser consideradas inexequíveis (artigo 59, §4º).
Há uma presunção de inexequibilidade. Essa presunção, porém, é relativa e pode ser afastada pelo licitante caso seja feita a demonstração da exequibilidade e da viabilidade da proposta. Esse é o entendimento consolidado no TCU e que era sumulado quando da vigência da Lei 8.666/93[2].
A Lei 14.133/21 prevê a possibilidade de a Administração promover diligência para identificar a exequibilidade de proposta presumida inexequível.
Com efeito, não é difícil de se identificar cenário em que empresa respectiva oferta preço com desconto superlativo e omite da contratante circunstância relacionada à própria operação que, acaso fosse revelada, anunciaria a inexequibilidade da proposta colocada.
Essa circunstância era identificável desde o início, mas a empresa deixou de conferir destaque à informação para conseguir ofertar o melhor preço sem que fossem levantadas suspeitas. Assim, o ente contratante termina impedido de aferir o problema ou o risco. Aí está a assimetria.
A assimetria informacional faz com que surjam problemas em instantes anteriores e posteriores à contratação.
Em momento anterior, a oferta de preços inexequíveis tende a gerar problemas de seleção adversa: o poder público, a partir das limitadas informações que possui, termina por selecionar proposta ineficiente e por excluir da seleção as propostas que efetivamente seriam, para si, mais vantajosas.
Em momento posterior, se a proposta adversamente selecionada efetivamente for inexequível, o poder público estará, possivelmente, a enfrentar problemas de risco moral: o contratado adotará decisões irresponsáveis por saber que não precisará arcar com as consequências negativas de suas ações.
A oferta de propostas inexequíveis é situação que se adequa ao conceito de “risco moral”[3]. O licitante, ao apresentar preço que sabe não ter condições de cumprir, termina por reservar a si a possibilidade de adoção de condutas oportunistas em momento ulterior. Exemplo: a execução a contento, somente, das parcelas mais vantajosas do contrato, com o abandono do esmero ou da qualidade no restante do objeto, ou mesmo o famigerado “jogo de planilha”, que força a Administração a promover adições contratuais em itens com preços unitários mais elevados.
Quando configurados, em determinado contrato, os problemas decorrentes da assimetria informacional, a Administração Pública vê-se “travada”, ou:
- se opõe à conduta oportunista do contratado, adotando medidas de pressão, sancionatórias e de seleção de outro privado para realização dos serviços (relicitação), evidentemente bastante custosas; ou
- se submete à conduta oportunista do contratado, promovendo alterações contratuais que permitam que haja a conclusão satisfatória dos serviços
Nas duas hipóteses, conforma-se situação “perde-perde” para a Administração Pública – todos os possíveis resultados (possible outcomes) são negativos ou subótimos.
Os problemas geram efeito multiplicador. Ao identificar que, pela fuga exacerbada ou pelo excessivo distanciamento do desconto máximo definido pelo legislador (25%) na avaliação de exequibilidade de propostas, tem sido não incomum a seleção de propostas total ou parcialmente inexequíveis, provavelmente irá, a Administração, em licitações subsequentes, promover a superavaliação de seus serviços, com fixação de orçamento demasiadamente alto.
Funcionaria, isto, como uma medida de proteção: se, conforme um orçamento X, propostas descontadas estão tendendo a ser inexequíveis, pode parecer razoável e adequado que seja estabelecido um orçamento X + Y%.
Com um orçamento em valor mais elevado, reduz-se a probabilidade de preços demasiadamente baixos a comprometer a viabilidade da execução contratual. Disto, porém, advém outro problema: a maior dificuldade, pelo ente contratante, em se obter preços mais baixos e mais vantajosos, comprometendo a economicidade. É uma “faca de dois gumes” para a Administração.
E não é só. As propostas inexequíveis, quando não identificadas e afastadas, têm como efeito a expulsão dos licitantes responsáveis do mercado – consequência lógica, porque não conseguirão competir com o desconto elevado da proposta inexequível.
Pois bem. Adotadas as premissas de que (i) as informações não fluem livremente, (ii) o fluxo representa custos (transaction costs) e (iii) a assimetria informacional gera consequências negativas para as contratações públicas, parece fundamental que as licitações públicas sejam estruturadas de modo a permitir que as informações possam ser extraídas dos licitantes pelos menores custos de transação possíveis, com fins a que se confira eficiência e economicidade às seleções e às contratações.
Exatamente por essa razão é que o legislador estabeleceu aquele percentual de 75% sobre o preço orçado como limite para descontos e identificação de exequibilidade de propostas. Ainda que o desconto seja superior ao limite, pode ser admitido, desde que demonstrado pela licitante após diligência pela Administração[4].
Há uma razão de ser no estabelecimento, pelo legislador, de percentual mínimo a ser utilizado para fins de aferição da exequibilidade de proposta de preços.
Pretende-se, efetivamente, pela medida, promover o resguardo da Administração Pública em relação a condutas nocivas que possam derivar da assimetria informacional inerente ao mercado. Protege-se o poder público, especialmente, de situações que possam derivar de problemas de seleção adversa ou de risco moral e que possam provocar, para a o ente contratante, um hold-up contratual (“aprisionamento” da Administração Pública, por assim dizer).
A fixação de presunção legal de exequibilidade, combinado à exigência de que os licitantes demonstrem que têm condições de cumprir o que propõem, consistem em interessantes mecanismos de revelação de informações para redução ou minimização da assimetria[5].
A partir desse mecanismo, a Administração consegue transferir, em algum grau, ao licitante o dever de demonstrar a existência de vantagem competitiva que permitiria a oferta do preço respectivo em valor inferior ao mínimo legal. Isto é: a Administração poderá, com menos custos, extrair as informações que atestam e justificam a vantajosidade e a exequibilidade da proposta do licitante.
É dividido com o particular, assim, o ônus inerente ao processo de “descobrimento” das razões que tornam viável ou inviável a proposta de preços apresentada.
Entende-se, portanto, que não deverá a Administração furtar-se ou adotar postura tímida quanto à utilização do mecanismo de revelação legalmente instituído.
Trata-se de medida que cuidará por favorecer todos os agentes envolvidos: o público, porque possuirá elevado nível de certeza sobre a viabilidade da proposta ofertada, selecionando, com razoável segurança, o melhor preço, e; o privado, que, quando de boa-fé, terá a oportunidade de demonstrar e fazer valer as suas vantagens competitivas.
É certo, bem como, que a prática tende a provocar o desestímulo ao oferecimento, por particulares oportunistas, de propostas inexequíveis, assim reduzindo a probabilidade de incursão em problemas de seleção adversa ou de risco moral. Faz-se válido que seja utilizada.
[1] Niebuhr, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
[2] Súmula nº 262/TCU: O critério definido no art. 48, inciso II, § 1º, alíneas “a” e “b”, da Lei nº 8.666/93 conduz a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta.
[3] Racional traçado no Acórdão nº 803/2024-Plenário do TCU (Rel.: Benjamin Zymler. Data da sessão: 24/04/2024). Disponível no link: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/acordao-completo/ACORDAO-COMPLETO-2655978
[4] Recentemente, pelo Acórdão 641/2025-Plenário (sessão: 26/03/2025), o TCU reforçou a relevância e o dever de realização de diligência pela Administração Pública. Veja-se: “A jurisprudência consolidada no âmbito do TCU estabelece que desclassificações ou inabilitações de propostas por falhas sanáveis são irregulares quando não há realização de diligências para esclarecimento, conforme previsto na legislação aplicável (Acórdão 2265/2020-TCU-Plenário) (…) Essa orientação ressalta que a decisão de não realizar diligências para sanar os vícios apresentados pela [licitante] reforça a percepção de formalismo excessivo. Além disso, a ausência de uma oportunidade de esclarecimento foi decisiva para a escolha de uma proposta mais cara.”. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/redireciona/acordao-completo/ACORDAO-COMPLETO-2704228
[5] Para aprofundamento no tema, indicamos o artigo “Assimetrias de Informação na Nova Lei de Licitações e o Problema da Seleção Adversa” de Marcos Nóbrega e Diego Franco de Araújo Jurubeba. Disponível em: https://irbcontas.org.br/artigos/assimetria-de-informacoes-na-nova-lei-de-licitacoes-e-o-problema-da-selecao-adversa/