O STF contra o mundo do trabalho

Em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal determinou a suspensão nacional da tramitação de todos os processos que tratam de controvérsia a respeito do enquadramento jurídico (trabalhista ou civil) de relações sociais firmadas por meio de contratos denominados de natureza civil pelas partes.

O plenário reconheceu a repercussão geral do tema, consignando que “[a] solução, a ser dada por meio da decisão definitiva e com efeito vinculante” não se limita ao contrato de franquia objeto do caso concreto, abrangendo “todas as modalidades de contratação civil/comercial”, o que “inclui, por exemplo, contratos com representantes comerciais, corretores de imóveis, advogados associados, profissionais de saúde, artistas, profissionais da área de TI, motoboys, entregadores, entre outros”.

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O acórdão alude, ainda, a uma premissa básica do Direito Constitucional e Internacional do Trabalho, no trecho em que menciona “decisões da Justiça do Trabalho que, em maior ou menor grau, restringiam a liberdade de organização produtiva”.

De fato, a Constituição de 1988 estabelece a função social da ordem econômica, e não a função econômica do trabalho humano. Nesse sentido, o artigo 170 prevê uma “ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, com a finalidade de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

No mesmo sentido, a Agenda 2030, adotada em 2015 pela Organização das Nações Unidas, tem como um de seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável “promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas e todos” (ODS 8). A comunidade internacional rechaça, portanto, a organização produtiva ilimitada, impondo a sustentabilidade não apenas ambiental, mas também social (que abrange o trabalho decente) como baliza para o crescimento econômico. 

Considerando que, no ordenamento brasileiro, assim como em muitos outros, a amplitude da proteção social trabalhista está diretamente relacionada ao enquadramento jurídico da relação como subordinada, e não autônoma, o Direito do Trabalho rege-se pelo princípio da primazia da realidade, consagrado pela CLT desde 1943.

Há quem diga, no entanto, que a CLT está ultrapassada. Mas os fatos são teimosos, e existem mesmo que os ignoremos. Recorramos a eles. 

O Código Civil de 2002 estabelece que o negócio jurídico é nulo quando “tiver por objeto fraudar lei imperativa”. Ademais, “[é] nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. Considera-se simulado, entre outras hipóteses, o negócio jurídico que contenha “declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira” (artigos 166, IV, e 167, § 1º, II, do Código Civil). 

Em 2006, a OIT adotou a Recomendação 198, segundo a qual a determinação da existência de uma relação de trabalho subordinado deve ser orientada principalmente pelos fatos relacionados à execução do trabalho e à remuneração do trabalhador, independente de caracterização da relação em sentido contrário por meio de acordo celebrado entre as partes.

Ademais, em outubro de 2024, o Conselho da União Europeia, principal órgão de decisão daquele bloco econômico, adotou a Diretiva 2.831, que estabelece parâmetros para a proteção do trabalho em plataformas digitais e é de observância obrigatória por parte dos países-membros.

O diploma adotou, como uma de suas diretrizes, “[o] princípio da primazia dos fatos, segundo o qual a determinação da existência de uma relação de trabalho deve se basear principalmente nos fatos relacionados com a execução efetiva do trabalho, incluindo a remuneração pelo trabalho, e não pela descrição que as partes dão à relação de trabalho (…)”.

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Observa-se que, tanto no Direito Internacional como no Direito Comparado, vai-se além do dispositivo celetista: ao princípio da primazia da realidade soma-se a presunção relativa de existência de vínculo de emprego.

Nesse cenário, em tempos de conservadorismo jurisprudencial no campo dos direitos sociais, o debate a respeito da licitude de contratos civis envolvendo a prestação de trabalho humano incita à paráfrase da máxima cristã sintetizada por Paulo de Tarso, direcionando-a aos atores sociais que representam a livre iniciativa: tudo lhe convém, mas nem tudo lhe é lícito.

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