No intrincado palco do Direito Empresarial, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica emerge como um princípio basilar. É o reconhecimento da autonomia da personalidade jurídica em relação aos sócios que confere estímulo ao empreendedorismo e delimita os riscos inerentes à atividade econômica. Portanto, caso haja uma situação de inadimplência da sociedade empresária, é o seu patrimônio que deverá responder por suas obrigações, protegendo o capital pessoal dos sócios, ressalvadas as hipóteses que a lei expressamente excetua.
Contudo, a regra de proteção do patrimônio dos sócios, em certas ocasiões, pode transmutar-se em um escudo para condutas reprováveis. É nessa zona cinzenta que se identifica o limite delicado em que a desconsideração da personalidade jurídica (DPJ) se apresenta não como uma negação da autonomia patrimonial, mas como um mecanismo de correção, uma válvula de escape para situações em que a estrutura jurídica é utilizada de maneira fraudulenta ou abusiva.
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A gênese da DPJ nasce no sistema anglo-saxônico e floresce no terreno fértil da jurisprudência e da doutrina, nutrida pela percepção de que o Direito não pode se quedar inerte diante de artifícios que, sob o véu da legalidade formal, perpetram danos a terceiros. As primeiras manifestações judiciais, ainda que tímidas, ecoavam a necessidade da DPJ para alcançar aqueles que, de fato, detinham o poder de decisão e se beneficiavam de condutas lesivas, utilizando a pessoa jurídica como anteparo para a prática dos atos.
Atualmente, no Brasil, persiste o debate acerca da aplicabilidade dos mecanismos de responsabilização indireta em áreas fronteiriças ao Direito Empresarial estrito, como o Direito do Trabalho. A controvérsia central reside na análise da extensão da responsabilidade de sócios pessoas jurídicas.
Embora possuam autonomia e independência jurídica em relação ao devedor principal, integram a mesma estrutura societária, podendo caracterizar grupo de sociedades. Essas diferentes interpretações ainda estão sob análise da jurisprudência, distanciando-se da aplicação direta do artigo 50 do Código Civil e do procedimento estabelecido no CPC/2015.
Direcionando o foco para a responsabilidade dos sócios pessoas jurídicas por dívidas trabalhistas, sabe-se que a Justiça do Trabalho se utiliza, por analogia, do artigo 28, § 5º do CDC para fundamentar o redirecionamento de execução para que estes respondam. O ponto que se destaca é a possibilidade ou não de inclusão no polo passivo da lide, na fase de execução trabalhista, de empresa integrante de grupo econômico que não participou do processo de conhecimento.
Uma das mais recentes discussões no âmbito do Direito do Trabalho refere-se ao debate do Tema 1.232 do STF. A disputa se debruça sobre os limites do chamamento previsto pelo §2º do artigo 2 da CLT e refere-se ao julgamento do RE 1.387.795/MG. Neste caso, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) havia decidido que a responsabilização de empresa componente de grupo econômico não estaria sujeita ao procedimento de DPJ, uma vez que o artigo 2º, § 2º, da CLT já estabeleceria a responsabilidade solidária entre as empresas do grupo.
Foi reconhecida a repercussão geral e o ministro Dias Toffoli, relator do recurso extraordinário, proferiu voto conhecendo e dando-lhe provimento para excluir a Rodovia das Colinas S/A do polo passivo da execução, propondo a fixação da seguinte tese para o Tema 1.232:
“i) O cumprimento da sentença trabalhista não poderá ser promovido em face de empresa que não tiver participado da fase de conhecimento do processo. O reclamante deve indicar na petição inicial as pessoas jurídicas corresponsáveis solidárias contra as quais pretende direcionar a execução, inclusive em casos de grupo econômico, demonstrando concretamente os requisitos legais; ii) Admite-se, excepcionalmente, o redirecionamento da execução trabalhista ao terceiro que não participou do processo de conhecimento nas hipóteses de sucessão empresarial (artigo 448-A, CLT) e abuso da personalidade jurídica (artigo 50, CC), observando-se o procedimento previsto no artigo 855-A da CLT e artigos 133 a 137 do CPC”.
Seu posicionamento foi acompanhado pelos ministros Zanin, Flávio Dino, André Mendonça e Nunes Marques e aguarda voto-vista decisivo do ministro Alexandre de Moraes.
Atualmente, a Justiça do Trabalho, em busca de garantir a efetividade da execução, determina a responsabilização solidária de empresas que não participaram da fase de conhecimento do processo trabalhista. Essa prática, embora com o objetivo de proteger os créditos trabalhistas, tem gerado críticas sobre a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa, previstos na Constituição Federal.
O Tema 1.232 do STF, ainda pendente de julgamento, deverá uniformizar o entendimento sobre a questão, estabelecendo limites para a responsabilização de empresas em execuções trabalhistas. A decisão final de mérito modificará os critérios adotados pela Justiça do Trabalho para responsabilização de sócios pessoas jurídicas.
A depender da tese fixada, a Justiça do Trabalho deverá adotar o procedimento de DPJ, previsto pelo artigo 855-A da CLT, para somete incluir sociedades empresárias com a comprovação da existência dos requisitos previstos no artigo 50 do CC.
Essa mudança de paradigma gerará um impacto significativo nas relações empresariais, sobretudo em estruturas complexas como holdings e consórcios. Acredita-se que a adoção da tese proposta pelo STF favorece uma aplicação mais adequada do instituto da DPJ, em consonância com os princípios estabelecidos pela legislação.
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Em suma, a desconsideração da personalidade jurídica se estabelece como um instrumento essencial para a manutenção do equilíbrio e da probidade no Direito Societário, conferindo ao Poder Judiciário a capacidade de reprimir o manejo fraudulento da autonomia patrimonial das sociedades limitadas. Sua trajetória, moldada por diversas correntes doutrinárias e pela premente necessidade de justiça em casos concretos, culminou em sua positivação legal, com a definição de requisitos rigorosos.
A expectativa de uniformização interpretativa recai principalmente sobre o Direito do Trabalho, alinhando-se aos critérios objetivos já estabelecidos na legislação geral (artigo 50 do CC/02 e artigos 133 e seguintes do CPC) e à diretriz que emerge do julgamento do Tema 1.232 do STF.