O novo Marco Legal do Saneamento Básico, instituído pela Lei 14.026/2020 reformulou profundamente o setor. De todas as inovações, a reconfiguração da prestação regionalizada talvez seja o elemento mais saliente, juntamente com a criação das normas de referência, editadas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
A ideia que rege a regionalização é a de que o agrupamento de municípios para fins de organização da prestação dos serviços de saneamento proporcionaria maior eficiência, viabilidade econômico-financeira e ganhos de escala. Tudo isso a bem do objetivo último do novo marco – a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033.
Idealmente, a regionalização conteria apenas um prestador, dotado de uma única concessão regional e regulado por um único sujeito. A unicidade de concessão e de regulador eram tidas por garantes da uniformidade regulatória, sem a qual a regionalização não prospera.
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Este cenário ideal não está sendo implementado. Isso porque o marco não incidiu sobre um vazio que poderia ser construído ex novo com as linhas puras da regionalização. O marco opera sobre uma realidade preexistente, marcada por contratos de concessão e de programa em vigor, prestações diretas, dificuldades de coordenação entre os titulares e, não por último, variedade de reguladores atuando no espaço regional.
Esses fatores levaram a regulamentação do novo marco a transigências. As normas que regem a regionalização compatibilizaram o cenário ideal com aquele real, marcado pela pluralidade de contratos e de reguladores numa área regionalizada.
Há, porém, um elemento sobre o qual não se pode transigir: a uniformidade regulatória. Ela deve ser obtida a despeito da ausência de unicidade de regulador. Além de ser uma exigência do novo marco, ela propicia segurança jurídica, isonomia entre os usuários e estimula a eficiência. Sua falta incrementa os custos de transação e a assimetria regulatória, suscita conflitos e antinomias, reduz economias de escala, a par de muitas outras disfunções. Sem uniformidade regulatória não há regionalização.
Não à toa, vários dispositivos do marco a chancelam. A uniformidade regulatória é o principal pressuposto da regionalização e também o principal objetivo das normas de referência (NR), os dois elementos que qualifiquei como os mais salientes do novo marco. As normas de referência são a expressão máxima dessa uniformidade, pois provêm de um único sujeito e pretendem ter alcance em todo o território nacional.
Mas, no que ela consiste, exatamente?
Para entendê-la, é preciso atentar para a distinção feita pelo artigo 2º do Decreto 7.217/2010, entre regulação (stricto sensu), e fiscalização. A primeira refere-se à produção de normas (“ato que discipline ou organize determinado serviço público”, inciso II); a segunda manifesta-se em “atividades de acompanhamento, monitoramento, controle ou avaliação” (inc. III, en passant: a distinção está na base do desenho das competências da ANA, que possui atribuição de produzir normas para os prestadores, mas não para fiscalizá-los).
À luz dessa distinção, pode-se afirmar que a uniformidade possui duas dimensões.
A primeira é a uniformidade normativa: existência, dentro de uma mesma área de prestação dos serviços de água e esgoto, de um único conjunto de regras para cada aspecto da prestação dos serviços de água e esgoto.
A segunda é a uniformidade de fiscalização: homogeneidade da atuação concreta de acompanhamento, etc. E existência de padrões unitários para orientar esta ação: aferição das metas, padronização do procedimento de fiscalização, etc.
Idealmente, um sujeito seria dotado de ambas as atribuições em toda a área regionalizada.
Quando tal não é o caso, necessitam as ERIs atuar de modo concertado, para proporcionar tanto uniformidade normativa quanto fiscalizatória. Trata-se de um autêntico dever jurídico. Como cumpri-lo?
Uma resposta aprofundada exigiria resolver quatro outras indagações:
- quais são as repartições de competência admissíveis entre as ERIs?
- como conceber os mecanismos de governança e os procedimentos de cooperação?
- como formalizar a ação conjunta?
- como lidar com convênios em curso entre as ERIs e os titulares (qual é o papel dos titulares)?
Aqui só é possível sugerir linhas de resposta à primeira indagação.
Antes de entrar no tema, vale ressaltar que a busca pela uniformidade regulatória começa antes da interação entre as ERIs. O primeiro passo está na adoção, por elas, das NRs. A produção da agência tem sido consistente e ampla – e deverá cobrir todos os temas arrolados pelo artigo 4º-A da Lei 9.984/2000 – de modo que incorporação dessas normas tende a reduzir o risco de grandes discrepâncias e antinomias que poderiam colocar em risco a uniformidade normativa.
Requer-se, porém, mais. A mera adoção das NRs não configura ação concertada entre as ERIs e discrepâncias ainda podem surgir. Não há coincidência plena entre o rol de matérias do artigo 4º-A e as tarefas das ERIs (artigo 23 da Lei 11.445/2007). Além do mais, as NRs sabiamente preveem espaços a serem completados pelas ERIs.
Dado este primeiro passo, medida de concertação intuitiva seria a instituição de uma repartição funcional de tarefas: à uma ERI caberia a competência regulatória estrita e à outra a fiscalização. Como, porém, há zonas cinzentas em cada atribuição, deveriam os reguladores instituir um órgão colegiado para a solução de intersecções. Nada obstante essa (e outras) complexidades, este desenho tem a vantagem de contar com a chancela normativa. Mas há outras possibilidades que só podem ser aqui mencionadas.
Pode-se cogitar, também, de uma repartição material de tarefas, pois nem a uniformidade regulatória nem a de fiscalização demandam apenas um regulador para cada função. Neste caso, instituir-se-ia uma coordenação em que cada ERI ficaria responsável pelas normas e pela respectiva fiscalização de diferentes matérias: regulação/fiscalização econômica, regulação/fiscalização técnica, etc.
Inclui-se ainda dentro do rol dos arranjos viáveis a criação, pelas ERIs, de um órgão supra partes, para a produção normativa conjunta, com a distribuição (ou concentração) da fiscalização.
Esses são alguns modelos de cooperação.
Fica para outra ocasião a discussão dos méritos, deméritos e do modo de concretizar cada alternativa. A escolha está no âmbito da discricionariedade, a qual é pautada por critérios, como as peculiaridades regionais, as características estruturais e o alcance da atuação de cada ERI etc.
Não há, porém, discricionariedade que autorize escolher não harmonizar a função regulatória (lato sensu): como dito, recai sobre os reguladores que convivem no mesmo espaço regionalizado um dever de atuação concertada, a bem do alcance dos objetivos do novo Marco do Saneamento Básico.
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A demonstração da existência desse dever não pode ser feita aqui. Mas basta, para concluir, lembrar o que diz o artigo 12 da Norma de Referência 4/2024, ponto de chegada de outras normas, legais e regulamentares:
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Art. 12. No exercício de suas competências, as ERIs devem se articular com outros reguladores e órgãos governamentais que interajam com a sua atividade regulatória.
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1º – As ERIs poderão editar atos normativos conjuntos que deverão prever regras sobre a fiscalização de sua execução.
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2º – As ERIs poderão constituir comitês para o intercâmbio de experiências e informações entre si ou com os órgãos integrantes do SBDC, visando a estabelecer orientações e procedimentos comuns para o exercício da regulação nas respectivas áreas e setores e a permitir a consulta recíproca quando da edição de normas que impliquem mudanças nas condições dos setores regulados.
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3º – As ERIs poderão celebrar convênios e acordos para a padronização de exigências e procedimentos e para a busca de maior eficiência nos processos regulatórios.
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Como se pode constatar, facultativos são os meios pelos quais se chega à cooperação, não ela própria.