A autonomia constitucional da advocacia pública

O dever de bem administrar os interesses coletivos é antigo corolário do princípio republicano. Hamilton e Madison já o retratavam no livro Os Federalistas como requisito qualificador de um bom governo (paper 68)[1].

Entre nós, à luz do amplo catálogo constitucional dedicado à Administração Pública, em especial no artigo 37, da Constituição de 1988, a doutrina também vem atribuindo a natureza de direito fundamental à boa administração.

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Juarez Freitas o define como “o direito fundamental à Administração Pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas”.[2]

Já Diogo de Figueiredo o elenca como “um dever constitucional de quem quer que se proponha a gerir, de livre e espontânea vontade, interesses públicos. Por isso mesmo, em contrapartida, a boa administração corresponde a um direito cívico do administrado – implícito na cidadania”[3].

Como costuma ocorrer, essa dimensão de direito – para os cidadãos – não afasta a de dever – para os administradores -, na lógica do caráter ambivalente dos princípios jurídicos.

A boa administração qualifica um dever de compliance e adequada governança que reveste toda a atuação do Estado, exigindo que as políticas e ações públicas observem valores superiores previstos na Constituição e as leis, adotem procedimentos abertos à participação do cidadão e busquem atingir padrões de eficiência e qualidade frente a sociedade civil.

Como exemplo eloquente, a transação tributária, que enfrentou entrave cultural por décadas no Brasil, com a doutrina nacional apegada aos dogmas da supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade do crédito tributário[4], foi realmente implementada em âmbito federal graças à atuação diligente e corajosa da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional de 2019 para cá.

Fato é que o direito fundamental à boa administração não encontrou ainda toda sua potencialidade, entre outras razões pelo fato de a advocacia pública não gozar de autonomia. Assim, espera-se um tratamento constitucional equivalente para a advocacia pública aos que já dispõem o Ministério Público e a Defensoria Pública como órgãos autônomos, porque não existe razão relevante para essa distinção atual.

Ao revés, na atual quadra, há uma omissão constitucional em não se conferir autonomia para a advocacia pública.

A advocacia pública é função essencial à justiça prevista entre os artigos 131 e seguintes da Constituição de 1988. Seu múnus constitucional volta-se à defesa dos interesses do Estado, por meio, fundamentalmente, da representação judicial e da consultoria do ente político que representa. No entanto, nada obsta que a lei atribua a estes órgãos outras funções, desde que compatíveis com sua missão institucional.

Nesta linha, a própria Constituição atribui à Advocacia Geral da União a função de assessoramento do Poder Executivo. Em âmbito federal, portanto, caberá às diferentes carreiras que compõem a AGU – Advogados da União, Procuradores Federais, Procuradores da Fazenda Nacional e Procuradores do Banco Central do Brasil – a defesa judicial e extrajudicial da União, dos demais órgãos e entidades estabelecidas em lei, bem como a consultoria e assessoramento do Poder Executivo Federal. Em simetria, nos Estados e no Distrito Federal caberão às respectivas Procuradorias a defesa judicial e consultoria do ente, além das demais funções que a lei lhes atribua.

O direito fundamental à boa administração irradia distintos efeitos sobre as diferentes atribuições da advocacia pública. Na representação judicial aponta para um dever específico de eficiência em sua atuação, considerado não apenas o resultado individual da lide, mas ainda os custos econômicos e sociais para a sociedade.

Um Estado Democrático de Direito desenvolve-se em meio a tensão de dois subsistemas sociais autônomos e funcionalmente diferenciados: a política e o direito[5]. A política é o território do poder político e da vontade. Seu exercício desenvolve-se por meio de decisões voltadas para o futuro e pautadas pela lógica de fins e meios. O direito, por sua vez, almeja a expectativa de estabilização das decisões e condutas.

Enquanto a política é o habitat do Poder Legislativo, o direito será a linguagem do Judiciário. A condução de políticas públicas pela Administração, no entanto, exigirá do governante múltiplas linguagens. Ao tempo em que a formulação de políticas públicas envolve escolhas de evidente conteúdo político, caberá ao Direito, em geral, sobretudo pela via da Constituição, assegurar a neutralização parcial e a estabilização da influência da política sobre a atuação da Administração Pública.

É quase desnecessário dizer, mas raramente nossos governantes são “poliglotas”. Afetos ao sistema político, enxergam votos e resultados, mas não os riscos e limites que o ordenamento lhes impõe. Ao advogado público caberá realizar a “tradução” e a prevenção dos riscos que o sistema jurídico impõe à execução da vontade política, sempre que possível, apontando quais alterações normativas ou caminhos alternativos viabilizam a concretização da vontade política nos lindes da Constituição e demais leis.

Atualmente, a instituição da AGU está mal colocada no ordenamento jurídico brasileiro. Estar a AGU vinculada diretamente ao Executivo Federal, algo que foi importante na consolidação do órgão[6], não dá mais cabo de tudo que se espera de um órgão que se constitui como função essencial à justiça.

Tendo em vista ser função essencial à justiça e o mediador entre as linguagens jurídica e política, o advogado público é aquele responsável por evitar ruídos na comunicação, apresentando argumentos favoráveis a decisões administrativas e políticas públicas e antecipando riscos jurídicos para a sociedade e o governo.

Juscelino Kubitschek dizia que “ninguém aguenta um homem árido. Um pouco de água fresca não faz mal a ninguém”[7]. Na questão do experimentalismo democrático, convida-se sempre a criação de arranjos institucionais novos, como forma se corrigir erros e vícios do passado.

É hora, historicamente, de se colocar a advocacia pública em seu devido lugar constitucional, o da autonomia.

Uma advocacia pública autônoma permitirá maior esforço na prevenção de litígios, no aconselhamento técnico e na recuperação de ativos.


[1] HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os Federalistas. 3ª Ed. Campinas: Russell Editores, 2010.

[2] FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 20.

[3] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Forense: Rio de Janeiro, 2009, p. 119.

[4] Sobre os entraves culturais aos métodos alternativos de solução de conflitos tributários, ver PAULA, Débora Giotti de. Desafios culturais na implementação dos meios alternativos de solução de conflitos no âmbito tributário. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2020.

[5] Para efeitos da diferenciação entre direito e política no presente artigo, as lições desenvolvidas pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann. Cf: Lhumann, Niklas. La costituzione come aquisizione evolutiva. In: “LUTHER, J.; PORTINARO, P.P. e ZAGREBELSKY, G. (orgs.). Il futuro della costituzione. Torino: Enaudi, 1996.

[6] Ver RAMOS, Saulo. O código da vida. 2ª edição, São Paulo: Saraiva, 2013.

[7] Cf., RESENDE, Otto Lara. O príncipe e o sabiá. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.72.

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