A tramitação do projeto de lei que pode reverter a inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e resguardá-lo de uma eventual condenação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) está travada no Congresso. Apesar dos frequentes ultimatos do líder do Partido Liberal, Sóstenes Cavalcante (RJ), e a contínua obstrução da pauta na Câmara pela legenda para pressionar o andamento da proposição, a urgência do PL da Anistia não deve ser pautada em curto prazo, segundo o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-RN).
No Senado, o presidente Davi Alcolumbre (União-AP) costura junto ao Supremo uma anistia alternativa por meio de projeto que diminua as penas dos envolvidos nos atos de 8 de Janeiro, mas aumenta a penalidade aos atores que lideraram e organizaram os ataques à Praça dos Três Poderes – Bolsonaro seria um deles, conforme denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR).
Além da dificuldade de articulação no Legislativo, especialistas em Direito Constitucional e Eleitoral consideram que dificilmente a proposição que prevê “zerar o jogo político” para o ex-presidente tenha respaldo jurídico. Se sancionada, a derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é dada como certa por especialistas ouvidos pelo JOTA.
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Com aspecto generalista, o principal projeto que pauta a anistia no Congresso, o PL 2858/2022, estabelece o perdão político a todas as pessoas que tenham participado de manifestações em qualquer lugar do território nacional do dia 30 de outubro de 2022 até a data em que a proposição entrar em vigor, se aprovada. Pelo texto do projeto, ficam absolvidos “manifestantes, caminhoneiros, empresários e todos os que tenham participado de manifestações nas rodovias nacionais, em frente a unidades militares ou em qualquer lugar do território nacional”. A garantia é de perdão a crimes penais e multas aplicadas pela Justiça Eleitoral ou Comum.
Em uma interpretação ampla do texto, ela poderia livrar Bolsonaro das decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que o considerou inelegível em 2023, e do STF, em que será julgado por envolvimento no 8 de Janeiro. Mas a abrangência da redação pode contar desfavoravelmente à proposta. “O texto não especifica quais condutas seriam anistiadas. Teria que ver o que seria considerado crime político aqui. Um crime eleitoral entra no campo do penal eleitoral, mas quando a gente fala de inelegibilidade, é um ilícito eleitoral, que não é crime”, explica a professora de Direito Eleitoral e Constitucional, Ana Claudia Santano, coordenadora da Transparência Eleitoral.
A professora também destaca que o texto atual não garante a reversão da inelegibilidade de Bolsonaro no caso da reunião com embaixadores. O episódio, em que o ex-presidente descreditou, sem provas, o sistema eleitoral brasileiro, ocorreu em julho de 2022. A data é anterior ao marco temporal estabelecido pelo projeto de lei.
O encontro com embaixadores promovido pelo ex-chefe do Executivo no Palácio da Alvorada rendeu a primeira declaração de inelegibilidade pelo TSE. Em junho de 2023, a Corte Eleitoral decidiu pelo impedimento de sua participação em eleições por 8 anos pela prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Bolsonaro ainda foi declarado inelegível pelo TSE uma segunda vez, também por 8 anos, em outubro de 2023, por abuso de poder político e econômico em ato do Bicentenário da Independência, no 7 de Setembro de 2022. As penalidades não são cumulativas.
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Embora o PL 2858/22 tenha ganhado o protagonismo do apelo pela anistia – foram reunidas mais de 260 assinaturas para o requerimento de urgência pela votação do texto – há, na Câmara, pelos menos outros sete projetos que também propõem a anistia política a atos relacionados às eleições de 2022 e/ou ao 8 de Janeiro. Um deles, o PL 2954/22, antecipa o marco temporal para condutas realizadas a partir de 1º de junho de 2022. Já no Senado, uma proposição trata do tema, o PL 5064/23, de autoria do ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos-RS).
O Partido Liberal também trabalha na elaboração de um novo texto para o PL 2858/22. Segundo Sóstenes Cavalcante, Bolsonaro tem ajudado na construção de uma proposição mais enxuta com foco no 8 de Janeiro. A ideia é propor uma alternativa objetiva a partir da qual os advogados do ex-presidente possam requerer também uma extensão do perdão a ele, caso o Supremo decida condená-lo.
Em 26 de março, a 1ª Turma do Tribunal recebeu, de forma unânime, a denúncia da PGR contra o ex-chefe do Executivo e outros sete aliados pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima e deterioração de patrimônio tombado. O julgamento do caso ainda não tem data prevista.
Para o professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Emilio Peluso Neder Meyer, o texto que tramita na Câmara pode até objetivar uma reversão total dos casos que envolvem Bolsonaro, mas esbarra em bases legais.
“A anistia tem um determinado conceito. Nada que aparece em termos constitucionais ou em termos legais surge do nada. O problema é que essa anistia que está desenhada pela Câmara dos Deputados tem efeito sobre questões que dizem respeito à própria Justiça Eleitoral, que não é parte do que seria objeto de uma anistia”, afirma.
Especialistas consideram que a perspectiva de livrar Bolsonaro e aliados no caso do 8 de Janeiro também traz um desvio conceitual da finalidade da anistia. “Os processos ainda estão em tramitação e, ao que tudo indica, todos os julgamentos estão amparados pelo devido processo legal. Então, se quer usar o instituto da anistia antes do término do processamento jurídico. Temos aí a anistia como um salvo-conduto e, guardadas as devidas proporções, como se fosse um habeas corpus preventivo”, declara a especialista em direito eleitoral Ana Claudia Santano.
O professor da USP Victor Schirato considera a previsão incomum no direito. “Eu só anistio aquilo que já passou. Eu só posso dar anistia post factum”, afirma. Para ele, as proposições passam ao STF uma mensagem de “nem processe porque já está anistiado”.
Pressão sobre o Supremo
A chance de que o PL da anistia, de fato, seja aprovado e reverta o quadro para Bolsonaro é considerada praticamente nula pelos especialistas ouvidos pelo JOTA. Eles relembram que o Congresso já passou por cima de decisões do TSE, mais recentemente no caso do perdão aos partidos que descumpriram a cota mínima para as candidaturas de pessoas pretas e pardas nas últimas eleições – por meio da Emenda Constitucional 133. Mas, ressaltam, seria inédito rever uma decisão sobre inelegibilidade. Além disso, não é esperado que o projeto seja sancionado pelo presidente Lula (PT) e uma revisão de vetos pelo Legislativo seria politicamente custosa.
Ana Claudia Santano, no entanto, pondera que o objetivo maior do texto já pode ter sido atingido. “Independentemente da aprovação da lei, é possível considerar que alguns propósitos principais já foram alcançados, que são justamente tomar a pauta pública, afetar a popularidade do governo e a credibilidade do Supremo”, afirma.
Mas mesmo que uma lei que favorece Bolsonaro nos termos atuais do que desejam seus apoiadores no Congresso seja promulgada, a perspectiva é de que o STF deve ser mobilizado de forma rápida. “Inevitavelmente, ela vai acabar caindo no Supremo Tribunal Federal, e o Supremo está com muito mais indicativos, pela própria jurisprudência que está construindo sobre esses crimes relacionados, pela severidade com que está impunido tais crimes, que ele vai declarar essa anistia como inconstitucional”, considera Emilio Peluso.
O professor de Direito avalia que os ministros devem adotar a interpretação majoritária similar do indulto natalino ao ex-deputado Daniel Silveira. Alexandre Moraes, relator da execução penal, vedou a aplicação a remissão em razão da pena ao do parlamentar estar associada a crimes contra o Estado Democrático de Direito. Foi seguido pela maioria dos magistrados. Somente Nunes Marques e André Mendonça divergiram.
Ocorre que esse processo seria mais um ônus ao Tribunal, já alvo de pressão política e acusado por parlamentares de legislar pelo Congresso. “É mais um peso na responsabilidade institucional do Supremo”, diz Peluso.