Quanto mais sabemos sobre as consequências da queima de combustíveis fósseis, mais esses combustíveis são queimados, paradoxo indelével do modelo produtivo global ainda em vigor[1]. Na mesma medida em que a temperatura planetária aumenta, cresce também a atuação lobista do setor fóssil (petróleo, óleo e gás), público ou privado, nos eventos mais importantes da agenda climática mundial: as Conferências Anuais das Partes (COPs). E para a COP 30 no Brasil, o contexto não deve ser diferente.
Nas últimas duas edições, houve mais presença de lobistas do que todos os delegados dos países mais afetados com a crise climática. Em 2023, na COP 28 realizada em Dubai, houve 2.456 representantes de petroleiras e apoiadores do setor[2]. Em 2024, na COP 29, em Baku, foram 1.773 atores do lobby fóssil[3].
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Promover e realizar uma COP sem qualquer prevenção e controle sobre eventuais interferências e influências indevidas ou, no mínimo, contraditórias à corrida climática, tanto por países como por empresas públicas ou privadas e demais grupos de lobby fóssil, não deixa de ser literalmente ter a “raposa” dentro do “galinheiro”, ditando como a “granja” deve “cuidar das galinhas”.
Por qualquer ângulo que se olhe, impossível não questionar se existem formas, mecanismos ou regras de controlar o lobismo fóssil, público e privado, e seus conflitos de interesses e potencial corrupção em decisões e discussões das metas climáticas a serem realizadas na próxima COP 30 de Belém, em novembro. E a resposta à questão é tanto sim como não.
Sim, porque um dos objetivos principais do Acordo de Paris é limitar o aumento da temperatura até o fim do século, com dever de redução de emissões de GEE ao menos até 2050, o que, espera-se, seja um vetor impeditivo à permanência indevida do uso de combustíveis fósseis nas próximas décadas, sob pena do insucesso do próprio acordo. A resposta também é não porque inexiste, em princípio, qualquer mecanismo de controle sobre essas complexas influências negativas nas negociações climáticas durante as COPs e até no seu após.
Sabe-se que atuação a partir de propósitos corporativos, públicos ou setoriais não é necessariamente ilegal. O lobby “positivo” e dentro das regras do jogo fez parte da institucionalidade e das construções políticas, econômicas e jurídicas da história, inclusive, esteve presente na própria evolução tortuosa das convenções e conferências climáticas e ambientais.
Agora, quando essa mesma atuação lobista, por atores públicos ou privados, é exercida fora da institucionalidade, sem parâmetros mínimos, sem transparência e compromisso, desprovida do essencial accountability e, especialmente, contra a ciência do clima (leia-se, negacionismo), quem e o que pode ser feito para prevenir e combater essas práticas?
No Brasil, pela Lei Federal 12.813/2013, o conflito de interesses representa a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública. O simples confronto não caracteriza a prática vedada, é necessário que o ato implique um prejuízo ao interesse público.
Assim, é possível dizer que o conflito de interesse em matéria climática estaria na situação destes confrontos indevidos de interesses privados em face do interesse público, de modo a afetar o regular funcionamento das negociações climáticas e o legítimo direcionamento de seus resultados.
Atuar em advocacies e conjunções setoriais para atrasar e/ou deslegitimar as metas de descarbonização e assim interferir em conferências públicas internacionais não seria um conflito de interesse com o próprio planeta em chamas?
Ou melhor, o conflito de interesse não seria contra a aplicação e o progresso das obrigações do texto do Acordo de Paris de 2015? A resposta é clara. E esses conflitos de interesses, potenciais ou concretos, não podem ser subdimensionados e ignorados durante as COPs climáticas.
Olhando para as diretrizes e conteúdos do Acordo de Paris, principal mecanismo de combate à emergência do clima dentro da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), a sua feitura já presume um disputado conflito de interesses de viés internacional. Isso em razão da intrincada questão histórica sobre quem foram os países que mais emitiram os gases de efeito estufa (GEE) e, assim, contribuíram mais intensamente para o agravamento do aquecimento planetário.
Trata-se da discussão sobre as responsabilidades entre países do Norte e do Sul Global, entre os que se desenvolveram à base de intensivo paradigma “carbonizante” e as demais nações em desenvolvimento que sofreram e seguem sentindo mais intensamente os efeitos da crise do clima.
Para além dessa histórica questão de justiça climática, é preciso que se discuta sobre o lugar cada vez maior de Estados nacionais petrolíferos e de setores privados, em especial ligados aos fósseis, nas discussões em Conferências das Partes (COPs) e o eventual resultado negativo disto em termos de ambição e progressividade de metas de mitigação, adaptação e financiamento climático.
Na busca por respostas, nada há no texto do Acordo de Paris acerca destas questões, tampouco quanto à prevenção e ao combate dessas influências que parecem ser decisivas aos próximos rumos do tratado.
Sobre o tema, a Transparência Internacional Brasil e um conjunto de mais de 260 organizações e especialistas de diversos países assinaram uma carta[4] com o objetivo de cobrar pela implementação de mecanismos eficazes de transparência e controle contra influências indevidas e conflito de interesses nas negociações climáticas. O documento foi remetido ao governo brasileiro, que preside a próxima COP 30, e ao secretariado da Convenção do Clima da ONU.
A carta trouxe propostas como a exclusão de lobistas de setores poluidores das delegações dos Estados, a implementação e a divulgação de declarações de interesses dos organizadores do evento e das delegações estatais. Além disso, o documento destacou também a necessidade de aprimoramento dos critérios de escolha dos próximos países anfitriões, para que as conferências não ocorram em países autoritários e pouco comprometidos com a agenda climática, como nas últimas três edições do evento (Egito, Emirados Árabes Unidos e Azerbaijão).
Quando relatórios recentes[5] apontam que metade das emissões globais líquidas de GEE em 2023 foi gerada por um grupo de apenas 36 empresas, a necessidade de prevenção, controle e combate ao conflito de interesses e ao lobismo indevido em negociações climáticas se mostra ainda mais estratégica aos fins do Acordo de Paris.
Essa questão, no fim do dia, também toca na luta por justiça climática em favor de países do Sul Global que sofrem de modo estrutural com as consequências da emergência do clima e, sobretudo, com os atrasos nas ambições das metas e financiamentos do Acordo da ONU.
O horizonte da governança climática dependerá intensamente do foco não apenas no que ocorre nos foros e instâncias oficiais e diplomáticas das COPs, mas também naquilo que acontece em seus corredores e fora deles.
Não há como realizar mais COPs climáticas sem o enfrentamento dessas questões, sem o devido tratamento, portanto, dos conflitos de interesse com o planeta e a humanidade.
[1] MALM, Andreas. Capital Fóssil: a ascensão do motor a vapor e as raízes do aquecimento global. Tradução: Humberto do Amaral. Revisão: Eduardo Rimi. São Paulo: Elefante, 2025.
[2] Kick Big Polluters Out – KBPO. Release: Record number of fossil fuel lobbyists at COP28. Disponível em: https://kickbigpollutersout.org/articles/release-record-number-fossil-fuel-lobbyists-attend-cop28 Acesso em: 20 abr. 2025.
[3] Kick Big Polluters Out – KBPO. Fossil fuel lobbyists eclipse delegations from most climate vulnerable nations at COP29 climate talks. Disponível em: https://kickbigpollutersout.org/COP29FossilFuelLobbyists Acesso em: 20 abr. 2025.
[4] TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL BRASIL. Mais de 260 organizações e especialistas cobram mais transparência e fim do conflito de interesses na COP 30. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/posts/mais-de-260-organizacoes-e-especialistas-cobram-mais-transparencia-e-fim-do-conflito-de-interesses-na-cop-30 Acesso em: 19 abr. 2025.
[5] THE GUARDIAN. Half of world’s CO2 emissions come from 36 fossil fuel firms, study shows. Disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2025/mar/05/half-of-worlds-co2-emissions-come-from-36-fossil-fuel-firms-study-shows Acesso em: 19 abr. 2025.