Mundo afora, tribunais ou salas vocacionadas a olhar para os elementos essenciais da relação jurídica de trabalho julgam diariamente os desvios do contrato de trabalho por meio de contratos civis de prestação de serviços. Na Alemanha, que possui uma justiça especializada, Tribunal Federal do Trabalho – o Bundesarbeitsgericht (BAG) – profere a palavra final a respeito da natureza jurídica do vínculo em causa: se de trabalho ou se de PJ, para utilizarmos o jargão amado.
Em Portugal, que não possui uma justiça formalmente especializada, é a Sala Social do Supremo Tribunal de Justiça a competente para ultimar se estão presentes, na relação jurídica subjacente, os requisitos da relação laboral.
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Daqui concluímos que, habitualmente, são as cortes formal ou materialmente especializadas na matéria do Direito do Trabalho que examinam os elementos essenciais da relação jurídica em causa para qualificá-la, ou não, como um contrato de trabalho (ou contrato CLT, para voltarmos a jargões). Por outras palavras, a fraude é lida por quem entende do riscado.
E isso é absolutamente válido para a economia digital. Cortes de Portugal, França, Itália e Alemanha têm julgado com frequência os novos e complexos casos de qualificação da relação subjacente com base nos seus instrumentos regulatórios tradicionais, com adaptações pontuais ao modelo de prova e indícios de laboralidade na economia digital.
Na Alemanha, o BAG reconheceu, no seu principal precedente sobre trabalho em plataformas, ainda em 2020 (BAG 9 AZR 102/20), que o trabalhador era dirigido e heterodeterminado pela plataforma, relativamente ao tempo, lugar e natureza da atividade. Foi reconhecido, nesse caso, o contrato de trabalho.
Normalizando o que deveria ser marginal, cunhamos um apelido a um fenômeno juridicamente antigo, embora economicamente complexo: a pejotização, que nada mais é do que uma fuga massiva ao modelo contratual típico celetista, para não abandonarmos os jargões. Segundo a Receita Federal, desde 2019, o número de MEIs cresceu 86% e alcança 15,8 milhões de inscritos. E agora, Brasil?
Uma opção, com contornos mais prováveis, será a de transferir o problema da identificação da natureza do contrato, se de trabalho ou de prestação de serviços, para a Justiça comum e, em dez anos ou talvez nem isso, o contrato de trabalho, com décimo terceiro, FGTS e outros direitos, será uma iguaria europeia, a ser elogiada por “MEIs em férias”.
Um caminho do meio seria, à maneira de Alemanha, Portugal e Espanha, a criação de uma tipologia própria para o trabalhador autônomo: o trabalhador economicamente dependente. À luz de requisitos temporais e remuneratórios mínimos a um dado contratante, o trabalhador acede a alguns direitos sociais.
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O outro caminho seria, em virtude dos últimos acontecimentos, que tocam o âmago do Direito do Trabalho, o de se pensar seriamente em um Código do Trabalho para se atacar o problema da floresta e não da árvore num país afogado em pejotização (alusão a Afogados em leis, de John French).
Um código em que caibam todos os jargões, que acomode os interesses sociais e empresariais, que esteja em sintonia com a economia digital, que organize a dogmática jurídica altamente fragmentada, mas que, naturalmente, não abra mão do seu centro gravitacional: o contrato de trabalho.