Reforma tributária, setor agropecuário e desafios da saúde pública

A reforma tributária aprovada em 2023, pela Emenda Constitucional 132, marcou o sistema tributário brasileiro ao instituir o Imposto Seletivo (IS), tributo extrafiscal destinado a desestimular o consumo de bens e serviços nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Apesar de parecer alinhada à justiça social e à sustentabilidade, a exclusão dos agrotóxicos da incidência do IS evidencia uma grave contradição entre os princípios constitucionais e as escolhas políticas adotadas.

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A Constituição não veda o Imposto Seletivo sobre insumos agrícolas. Prevê, apenas, de forma genérica, que produtos com alíquota reduzida de IBS e CBS não serão atingidos pelo IS. Essa vedação, no entanto, admite interpretação crítica, pois a concessão de alíquotas reduzidas não foi acompanhada de critérios técnicos ou gradação conforme a toxicidade dos produtos. Assim, agrotóxicos altamente nocivos à saúde e ao meio ambiente continuam beneficiados por renúncias fiscais, enquanto bebidas alcoólicas e açucaradas foram incluídas como “seletivas” [1] [2].

A decisão também se ancora em uma disputa semântica que molda o debate público. Em que pese a legalidade do termo “agrotóxico”, consoante artigo 2º, inciso XXVI, da Lei 14.785/2023, o setor agroquímico insiste na expressão “defensivos agrícolas” para nomear substâncias essencialmente tóxicas.

Essa construção linguística, longe de ser neutra, desloca o foco da toxicidade e reforça a legitimidade social de seu uso[3]. A linguagem, como ferramenta de poder, suaviza os impactos dos agrotóxicos e perpetua políticas fiscais privilegiadas, dificultando a consciência crítica sobre seus riscos.

O Brasil lidera o consumo mundial de agrotóxicos, com 719 mil toneladas utilizadas em 2021 — número que supera amplamente os dados de China e Estados Unidos[4]. Estima-se que 84% dessas substâncias sejam usadas no cultivo de commodities de exportação, como soja e milho, reforçando um modelo agrícola voltado ao mercado internacional e alheio às necessidades alimentares da população[5].

Esse arranjo é sustentado por políticas fiscais que, ao isentar ou reduzir tributos sobre os agrotóxicos, funcionam como subsídios indiretos. Enquanto isso, o SUS assume os custos da intoxicação — um impacto sanitário e orçamentário[6].

Apenas no Paraná, os custos com intoxicações agudas por agrotóxicos ultrapassam US$ 149 milhões. Nacionalmente, a renúncia fiscal com isenções a esses produtos somou R$ 12,9 bilhões em 2021 — cinco vezes mais que o valor destinado pela União à prevenção de desastres naturais em 2024[7]. Trata-se de um paradoxo fiscal e ambiental: o país se compromete com a proteção ambiental em textos constitucionais e tratados, mas financia com recursos públicos práticas nocivas à biodiversidade, à saúde coletiva e à segurança alimentar.

Diante disso, é necessário repensar a organização econômica, como propõe a economia do cuidado. Essa abordagem, em ascensão no debate público, busca reequilibrar a estrutura produtiva ao priorizar o bem-estar e a sustentabilidade[8]. Valoriza o trabalho reprodutivo, historicamente não remunerado pelas mulheres, e redefine os marcos da eficiência econômica ao incorporar a proteção da vida como princípio inegociável. Nesse cenário, a política tributária pode e deve ser instrumento de transformação.

A tributação dos agrotóxicos deveria refletir seu grau de toxicidade e fomentar práticas sustentáveis, como a agroecologia e a agricultura familiar. Isso exigiria romper com o estímulo indiscriminado ao agronegócio exportador e reconhecer os impactos desiguais da exposição a tais produtos. São as mulheres — especialmente as negras e periféricas — que primeiro vivenciam esses efeitos, seja no trabalho direto no campo, seja pela exposição ao leite materno, à água contaminada ou aos alimentos consumidos diariamente[9].

Pelo ecofeminismo, os danos causados pelos agrotóxicos vão além do ambiental: estruturam formas de dominação que associam corpo feminino e natureza como territórios de exploração[10]. Federici aponta que o trabalho de cuidado — da gestação à criação dos filhos, do cuidado com idosos à manutenção do lar — foi e segue invisibilizado como pilar da reprodução social. Tributar os agrotóxicos é também uma medida de justiça de gênero, pois protege os corpos mais afetados e redistribui os custos de um modelo que concentra lucros e difunde riscos.

Diversos países adotam diretrizes mais coerentes com objetivos climáticos e sanitários. A França aplica tributação progressiva conforme a periculosidade dos produtos, e a União Europeia busca reduzir em 50% o uso e os riscos dos agrotóxicos até 2030[11]. O Brasil, por sua vez, segue na direção oposta: a Lei 14.785/2023, chamada Lei do Veneno, flexibilizou o registro de novos agrotóxicos, ampliando o fosso entre ciência e regulação[12].

Nesse cenário, é fundamental retomar os princípios constitucionais que orientam o Direito Tributário. A seletividade, quando aplicada de forma técnica e guiada pela essencialidade, pode induzir práticas agrícolas menos nocivas. A leitura de que os agrotóxicos, por serem insumos, não podem integrar o IS ignora que o próprio conceito de “insumo” precisa ser revisto à luz das novas balizas constitucionais, especialmente as que vinculam a tributação à proteção ambiental e à saúde pública[13].

É urgente reavaliar a lógica fiscal, revelar os interesses por trás das isenções e construir um sistema tributário alinhado com a vida. A reforma abre uma janela de oportunidade, mas sua regulamentação expõe a persistência de um modelo extrativista, patriarcal e racista, que transforma alimento em mercadoria, o campo em monocultura, e os corpos das mulheres em zonas de risco silencioso.

Este artigo inicia essa reflexão, mas o debate é vasto. É preciso aprofundar a análise da linguagem tributária e seus efeitos semióticos; compreender os impactos sob o viés da justiça climática; investigar a contaminação racializada no campo; debater o apagamento da agricultura familiar; e comparar experiências internacionais que articulam tributação, saúde e meio ambiente. Reestruturar a política fiscal é, em última instância, um ato de cuidado. Cuidado com o futuro, com o planeta e com os corpos que ele sustenta.


[1] Bozzo CM. Seletividade e reforma tributária no agronegócio. Rev Contemp. 2024.

[2] Conselho Nacional de Saúde. Recomendação sobre agrotóxicos no IS. CNS; 2024.

[3] Spivack C. Tampon Taxes and Exclusion. Columbia J Gender Law. 2021.

[4] Bombardi LM. Agrotóxicos e Colonialismo Químico. São Paulo: Elefante; 2023.

[5] ABRASCO. Impactos dos agrotóxicos na saúde pública. Rio de Janeiro; 2020.

[6] FIOCRUZ. Impactos econômicos dos agrotóxicos no Brasil. Rio de Janeiro; 2023.

[7] ABRASCO. ADI 5553 e isenção fiscal de agrotóxicos. 2024.

[8] Albiero MS. Economia do cuidado e tributação. Brasil de Fato; 2024.

[9] Fundação Heinrich Böll. Atlas dos Agrotóxicos. 2023.

[10] Federici S. O Patriarcado do Salário. São Paulo: Boitempo; 2021.

[11] Climainfo. Brasil lidera uso de agrotóxicos. 2024.

[12] Greenpeace. Lei dos Agrotóxicos (“Pacote do Veneno”). 2024.

[13] Pereira AC, Moura AT. Tributação ambiental no Brasil. Rev Dir UNIGRANRIO. 2006.

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