A atividade de consultoria – pública ou privada – instala uma série de desafios para os advogados. Aconselhar o cliente sobre o melhor caminho a seguir, alertar o gestor sobre os eventuais cenários de risco das suas decisões, saber dizer não quando não há solução jurídica possível, examinar determinada matéria complexa com prazo exíguo, são alguns exemplos que acometem cotidianamente os advogados que atuam na consultoria.
Quando a consultoria tem por objeto processos de contratação pública, tais desafios podem assumir maiores proporções, em especial por se tratar de uma atividade sujeita ao controle externo e que movimenta vultosas quantias de recursos públicos.
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Convidado a refletir sobre o tema do papel da assessoria jurídica em eventos e seminários sobre a Lei 14.133/21, acabei desenvolvendo a ideia de propor algumas sugestões de natureza pragmática para auxiliar os advogados públicos no momento da elaboração do parecer jurídico.
Este breve artigo não tem a pretensão de adentrar em nenhum tema específico de contratação pública, mas apenas compartilhar alguns anos de experiência na atividade consultiva, notadamente na área de contratação pública. O título não tem qualquer conotação bíblica ou religiosa, mas apenas o objetivo de chamar a atenção para um conjunto de comportamentos que podem auxiliar a tarefa dos advogados na intricada tarefa de exercer a consultoria no campo das contratações públicas. Vamos a eles.
1º mandamento: o parecer jurídico tem por objetivo resolver um problema da vida. Não é uma peça doutrinária.
A formação do operador do Direito brasileiro tem como lastro o Direito Europeu Continental, com raízes no Direito Romano. Temos a tendência de elaborar peças jurídicas a partir de pensamentos abstratos, principiológicos e sistêmicos, muitas vezes nos afastando de uma análise com enfoque mais pragmático.
Não raras vezes, acontece de o parecerista se preocupar em apresentar um produto que mais se assemelha a um artigo de doutrina, esquecendo-se do básico: o parecer serve para resolver um problema da vida, como dizia o professor Marcos Juruena Vilela Souto em suas aulas e palestras. O parecer não é um fim em si mesmo.
Evidente que o parecer deve apresentar conteúdo jurídico sólido, o que não se contunde com um opinamento com tamanha abstração que não examine os fatos e os aspectos concretos do processo de contratação pública. Parafraseando o professor Rodrigo Zambão: “não faz sentido citar Dworkin em parecer de pregão”.
2º mandamento: a linguagem jurídica deve ser compreendida pelos gestores
Passou o tempo do juridiquês. A ciência jurídica moderna não se conforma mais com um linguajar que seja incompreensível para pessoas com outras formações. Claro que isso não afasta a utilização de expressões e classificações jurídicas; afinal, esse é o nosso ofício.
Entretanto, a mesma diligência e preocupação que temos com o conteúdo do parecer jurídico devemos ter com a forma e com a escrita. Quanto mais claro e objetivo melhor. Quanto mais conseguirmos traduzir expressões jurídicas para a compreensão do cidadão comum melhor. Foi-se o tempo de pareceres permeados de adjetivos e advérbios inúteis, com citações doutrinárias que não tem relação com a hipótese concreta ou que servem para dizer o óbvio.
A determinação do legislador foi expressa: o inciso II, do § 1° do artigo 53 da Lei 14.133/21 atribuiu ao órgão de assessoramento jurídico o dever de “redigir sua manifestação em linguagem simples e compreensível e de forma clara e objetiva”. As conclusões do parecer deverão estar sumarizadas de forma objetiva e clara, com recomendações que sejam compreensíveis pelo gestor público.
A mesma recomendação serve para as demais áreas técnicas. É dever do engenheiro, do arquiteto, do administrador, entre outros profissionais, buscar ser o mais claro possível, traduzindo termos e temas tecnicamente complexos para que sejam bem compreendidos por pessoas que não tenham a sua formação.
Ruy Castro, em excelente artigo publicado na Folha de São Paulo em 28/9/23, pondera que “às vezes vejo-me envolvido em discussões sobre “escrever bem”. Já pensei no assunto e tenho uma ideia formada: ninguém “escreve bem”. Alguns “reescrevem bem” e, com isso, produzem textos mais enxutos, claros e eficientes. O segredo está em ler o que se acabou de escrever, enxergar os excessos, as impropriedades, as palavras ou frases obscuras e meter-lhes a caneta –português arcaico para “deletar”.
3º mandamento: o parecer deve examinar as alternativas possíveis e alertar o gestor para os riscos de cada solução
Nem sempre a questão jurídica examinada pelo parecerista levará a apenas uma solução jurídica. A depender do caso concreto, caberá ao órgão jurídico examinar todas as alternativas possíveis e alertar o gestor público sobre o risco na adoção de cada uma delas.
Existem hipóteses nas quais a solução pretendida é ilegal. Encontra obstáculo intransponível no ordenamento jurídico. Existem, de outro lado, problemas complexos que poderão ser resolvidos pelo parecerista a partir do seu conhecimento jurídico e da sua capacidade de criar soluções jurídicas inovadoras.
É dever do parecerista viabilizar que o gestor público tome decisão administrativa informada, considerando todos os ângulos do problema e, ainda, ciente dos eventuais riscos jurídicos envolvidos.
4º mandamento: o parecer encontra limites na ciência jurídica.
Não cabe ao parecerista se imiscuir em áreas que não são próprias ao seu conhecimento. As contratações públicas são, por essência, multidisciplinares. A depender do seu objeto, contam com a expertise de engenheiros, administradores, economistas, técnicos em processamento de dados, entre outras especialidades.
Não compete, por exemplo, ao parecerista adentrar em aspectos técnicos do termo de referência ou mesmo do projeto básico ou executivo, quando o objeto for a contratação de uma obra ou serviço de engenharia. Pode, eventualmente, ter dúvidas sobre questões técnicas e solicitar esclarecimentos das respectivas áreas competentes, mas não é sua atribuição ou mesmo responsabilidade dar a palavra final sobre aspectos que escapam da ciência jurídica.
5º mandamento: parecerista deve interagir previamente com outras áreas durante o processo de contratação pública
O parecerista deve interagir com as áreas técnicas responsáveis pela contratação pública. Não pode atuar de modo insulado e apartado das demais etapas da fase preparatória da contratação, o que não significa dizer que delas deva ser o responsável, como referido no quarto mandamento.
Quanto melhor o parecerista entender o objeto da contratação e seus aspectos técnicos, melhor será o seu opinamento. Nem sempre manifestações formais no processo administrativo se apresentarão como o melhor caminho. Por vezes, será necessário convidar a área técnica para esclarecimento das dúvidas em reuniões presenciais. Atuações meramente burocráticas e excessivamente formalistas não são suficientes.
6º mandamento: o parecer não deve adentrar em valorações próprias do gestor e de mérito administrativo
O parecer jurídico deve ser deferente ao espaço de mérito da decisão administrativa. Ao parecerista cabe delimitar as balizas de atuação do gestor público traçadas pelo ordenamento jurídico, mas sem qualquer ação intrusiva que avance no âmbito das competências discricionárias do agente público responsável pela tomada de decisão.
Um exemplo permite melhor compreensão. Não cabe ao órgão jurídico afirmar se uma determinada situação fática se enquadra como contratação emergencial (artigo 75, inciso VIII, da Lei 14.133/21). A valoração dos fatos compete ao gestor público, sendo a emergência um conceito jurídico indeterminado.
Claro que as especificidades do caso concreto podem tornar a situação objetiva, passando o conceito a se situar na zona de certeza positiva ou na zona de certeza negativa, hipóteses que autorizariam, em caráter excepcional, a manifestação do órgão jurídico acerca da própria situação emergencial.
O parecerista deverá advertir sobre os requisitos e limites impostos pelo legislador, bem como orientar sobre o procedimento que deverá ser observado para ultimar a contratação. Deve, ainda, exigir a motivação das decisões administrativas. Entretanto, atestar se determinada situação fática se enquadra como emergência é tarefa que compete ao gestor público.
7º mandamento: o filtro da LINDB na interpretação da Lei 14.133/21 e a observância de outros subsistemas normativos.
A Lei 13.655/18 alterou o Decreto-Lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) também conhecida como LINDB. O seu objetivo foi agregar regras gerais de Direito Público que devem orientar a ação de gestores e controladores, com vistas a aumentar a eficiência e a segurança jurídica na aplicação das normas administrativas.
O artigo 5° da Lei 14.133/21 explicita a obrigatoriedade da observância dos parâmetros fixados na LINDB em todo e qualquer processo de contratação pública. A LINDB é o filtro que deve nortear a atividade administrativa de licitar e celebrar contratos administrativos, o que alcança, também, a análise jurídica a ser empreendida pelo órgão competente. A lente do parecerista quando examina qualquer questão de licitação ou de contrato administrativo é a lente da LINDB.
E mais: leis de processos administrativos, normas de Direito Financeiro e leis e decretos de cada um dos entes federativos que suplementam a legislação nacional, deverão ser de conhecimento dos órgãos jurídicos, a quem caberá promover uma interpretação sistêmica e harmônica das questões que lhe são submetidas.
8º mandamento: a importância da doutrina, da jurisprudência e da posição dos Tribunais de Contas
O parecerista deve buscar estruturar o seu opinamento ancorado em entendimentos da doutrina e da posição da jurisprudência, inclusive dos Tribunais de Contas. Quanto maior for este alinhamento, maior a segurança jurídica para o gestor e para o próprio êxito da contratação pública. O parecer não é mediúnico.
Evidente que o parecerista poderá adotar posicionamento que não se alinha com a posição majoritária sobre determinado tema. Em tais situações, deverá fazer referência expressa ao entendimento contrário ao seu, explicitando de forma motivada as razões que justificam a sua posição jurídica. O que não lhe cabe é ignorar a existência de entendimento diverso, em especial quando a sua posição for minoritária.
O parecerista deve, ainda, estar atento para a jurisprudência administrativa das Cortes de Contas, em especial do Tribunal de Contas da União (TCU), que, indiretamente, acaba por funcionar como ente regulador do sistema de contratação pública. As suas orientações se espraiam para outros entes federativos, influenciando – não raras vezes – a posição da doutrina e do próprio Poder Judiciário.
9º mandamento: a importância dos precedentes administrativos
O parecerista não é um ser isolado. A sua manifestação representa o opinamento do órgão jurídico do qual integra. Deve, portanto, atenção aos precedentes administrativos e a consolidação dos entendimentos anteriores sobre aquela determinada matéria.
Não é incomum que o parecerista tenha opinião pessoal distinta daquela institucionalmente formada no âmbito do seu órgão. Entretanto, não pode ignorar os entendimentos pretéritos que lhe antecederam, cabendo-lhe fazer expressa referência, explicitando, ainda, as razões do distinguishing. A palavra final será dada pelo visto da chefia do órgão jurídico e, no mais das vezes, pelas Procuradorias e Advocacias Públicas, a quem compete uniformizar a posição da consultoria jurídica.
Recomendável que entendimentos jurídicos reiterados sejam consolidados em Enunciados ou Súmulas Administrativas, facilitando a compreensão de gestores e administrados da posição jurídica do órgão em tema de contratação pública.
10º mandamento: a interpretação budista da Lei 14.133/21, com desapego das premissas da Lei 8.666/93.
A Lei 14.133/21 inaugurou um novo sistema de contratação pública no país. Precisa ser interpretada prospectivamente, com desapego das convicções arraigadas que orientavam a aplicação da Lei 8.666/93.
Os desafios no século 21 são mais complexos e demandam a construção de soluções inovadoras e alinhadas com os paradigmas do Direito Administrativo Contemporâneo. Parte importante desta missão está nas mãos dos pareceristas e dos advogados públicos, cuja interpretação poderá ser decisiva para colocar a contratação pública nos patamares de excelência e de eficiência que a sociedade brasileira espera e merece.