Diálogo competitivo: ferramenta estratégica, mas o que precisa para pegar?

No último 1º de abril, completamos quatro anos da inserção de uma nova ferramenta no ordenamento jurídico administrativo brasileiro – o diálogo competitivo[1] –, com a promulgação da nova Lei de Licitações e Contratações Públicas (Lei 14.133/2021).

Alexandre Aragão ensina que a ferramenta tem inspiração no pioneiro competitive dialogue inglês e é uma adaptação do diálogo concorrencial do sistema europeu (Diretiva 2004/18/CE, substituída pela Diretiva 2014/24/UE), este já incorporado há muito tempo nas legislações de países como Portugal (2008), Espanha (2007), Alemanha, Itália (2006), França (2006) e Reino Unido (2006)[2].

No Brasil, o diálogo competitivo foi introduzido com natureza jurídica de modalidade de licitação, o que significa que é um processo a ser observado pela Administração Pública a fim de selecionar a proposta que resulte contratação mais vantajosa de obras, serviços ou compras, assim como para contratação de concessões comuns de serviços públicos e PPPs[3].

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Destaque-se que a ferramenta se destina a situações muito específicas que envolvam a busca por soluções de problemas públicos de forma inovadora, incerta e que fogem das capacidades da Administração, ou ainda para a escolha de uma solução já definida, mas que depende de aperfeiçoamento das alternativas técnicas, jurídicas e financeiras disponíveis, tornando-as mais adequadas à resolução do problema público[4].

Sem muito esforço, nota-se que o diálogo competitivo não é compatível com todo tipo de contratação pública, sendo inadequado, por exemplo, para a aquisição de bens e serviços comuns facilmente encontrados no mercado, pois é direcionado a contratações que envolvam objetos complexos e inovadores (obras de infraestrutura, serviços especializados de tecnologia da informação etc.).

Seu procedimento é singular em relação às demais modalidades licitatórias, podendo ser decomposto em três fases:

  1. a de pré-seleção, de caráter objetivo e que visa selecionar licitantes que participarão da etapa seguinte, admitidos todos os que  preencham os requisitos do edital;
  2. a de diálogos com esses licitantes para o desenvolvimento das alternativas capazes de atender às necessidades públicas previamente estabelecidas; e, após a definição do objeto contratual
  3. a fase competitiva, com a apresentação de propostas finais e seleção daquela mais vantajosa para a Administração Pública.

Aqui cabe registrar que, embora possam existir semelhanças, o diálogo competitivo não se confunde com o conhecido procedimento de manifestação de interesse (PMI). Entre as muitas diferenças (que podem ser sutis), o diálogo competitivo é uma modalidade licitatória, enquanto o PMI é mero procedimento auxiliar das licitações[5].

Isso significa que, no PMI, são selecionados estudos técnicos, econômico-financeiros e/ou jurídicos que poderão (ou não) ser incorporados em eventual edital da uma licitação. Isto é, o PMI pode preceder uma licitação, já o diálogo competitivo é o próprio procedimento licitatório.

Percebe-se que o perfil disruptivo do diálogo competitivo está exatamente na possibilidade de a Administração Pública estabelecer os contornos do futuro objeto contratual na fase licitatória, através de sucessivas reuniões com os licitantes sem prazo determinado para o encerramento dos diálogos[6], diferentemente das modalidades de licitação tradicionais, em que as condições da contratação já são predeterminadas no edital, sem margens para discussão do objeto pelos licitantes.

Esse diálogo prévio com o mercado pode gerar ganhos de eficiência significativos, tais como a redução da assimetria de informações, alinhamento dos interesses das partes, otimização da escolha da melhor solução, modelagens contratuais mais assertivas e estímulo à formação de um bom relacionamento entre os futuros contratantes, pressuposto indispensável para que a contratação e a execução contratual tenham êxito.

Em suma, é um instrumento estratégico que reforça a tendência de consensualidade e dialogicidade do atual Direito Administrativo brasileiro, que cada vez mais abandona institutos focados na ideia de Poder Público como autoridade e busca desenvolver ferramentas de parceria entre os setores público e privado com vistas a otimizar a qualidade dos serviços públicos, gerando impactos positivos na vida das pessoas.

Visto seu desenho, conclui-se que o diálogo competitivo é uma ferramenta de Direito Administrativo capaz de abrir portas para inovação, na medida em que proporciona a captação da expertise e da criatividade dos parceiros privados por meio de um processo licitatório dialógico voltado à concepção de novas e melhores soluções, além de funcionar como remédio para as dificuldades da Administração ligadas à formulação de soluções inovadoras para satisfação de necessidades públicas.

Todavia, é certo que se trata de modalidade licitatória eminentemente complexa a exigir que sua condução ocorra por meio de comissão específica, composta por pelo menos três servidores públicos permanentes, com a possibilidade de contratação de profissionais para assessoramento técnico da comissão, inclusive auditores independentes para avaliar a conformidade do procedimento com as normas de governança pública e melhores práticas[7].

Desse modo, a falta de servidores públicos capacitados para conduzir a licitação já seria, por si só, um grande entrave para a adoção da modalidade. O gestor público provavelmente teria receio de contratar profissionais especializados para assessorar a comissão e, ao final, não conseguir encontrar a melhor solução nem selecionar a melhor proposta para o eventual contrato, remanescendo apenas a despesa com o serviço de assessoria, que será objeto de futura prestação de contas aos órgãos de controle.

Daí surge o medo de errar e de ser responsabilizado, o que paralisa o gestor público e limita o uso da ferramenta – relembremos aqui o cada vez mais citado “apagão das canetas”.

Vale lembrar que existem cerca de 5.570 administrações públicas municipais que, em sua maioria esmagadora, possuem estruturas administrativas e quadros funcionais bastante limitados, sendo pouco provável que tenham agentes públicos qualificados para bem conduzir uma modalidade licitatória tão complexa.

Assim, tudo indica que o diálogo competitivo não será empregado de modo proporcional em todas as esferas federativas, limitando-se o uso na Administração Pública Federal, na de alguns estados e em pouquíssimos municípios. Some-se a isso o elevado número de tentativas frustradas de adoção desse instrumento estratégico, seja pela sua aplicação equivocada (fora das hipóteses legais), seja pela má condução do procedimento. A quantificação desse problema deve ser objeto de trabalho científico e foge dos limites do presente artigo.

De qualquer modo, independentemente da esfera federativa, a efetividade do diálogo competitivo demanda a capacitação de servidores públicos para a condução do procedimento licitatório com segurança jurídica, financeira e operacional, possibilitando que o gestor público confie na adoção da ferramenta como forma de promover a contratação de soluções inovadoras na Administração Pública.

De fato, não é tarefa fácil promover mudanças de paradigmas. No entanto, é necessário que esses gestores, sobretudo os da alta administração, reconheçam a relevância do investimento na qualificação permanente de servidores públicos para que possam se especializar na atividade contratual do Estado, o que, ao fim e ao cabo, reverterá em contratos administrativos mais eficientes e que geram melhoria dos serviços prestados à população.

A própria Constituição Federal impõe a formação e o aperfeiçoamento permanente de servidores públicos (art. 39, §2º) com o propósito de alcançar o modelo ideal de administração pública eficiente, gerencial e baseada em metas e resultados.

Ferramentas estratégicas como o diálogo competitivo são boas e úteis para contratações públicas inovadoras, mas sua efetiva utilização depende da profissionalização de servidores públicos.


[1] Art. 6º, XLII, da Lei 14.133/21.

[2] ARAGÃO, A. S. O diálogo competitivo na nova lei de licitações e contratos da administração pública. RDA/FGV, v. 280, n.3, p. 41-66, set/dez. 2021.

[3] Art. 28, V, da Lei n. 14.133/2021; art.2º, II e III, da Lei n. 8987/1995; e art. 10 da Lei n. 11.079/2004.

[4] O art. 32, I e II, da Lei 14.133/21 estabelece as hipóteses de contratação que autorizam a adoção do diálogo competitivo. Há relevante discussão acerca da cumulatividade das situações previstas no inciso I (alíneas “a”, “b” e “c”) e entendemos que a inclusão da partícula “e”, ao final da alínea “b”, foi propositalmente incluída pelo legislador com o intuito limitar a utilização da modalidade licitatória com base no inciso I ao preenchimento de todas as hipóteses previstas nas alíneas referidas. De qualquer modo, a melhor interpretação do dispositivo legal (ou pelo menos a predominante) dependerá de sua aplicação prática e da jurisprudência formada nas esferas administrativa, controladora e judicial à luz dos casos concretos analisados.

[5] Art. 78, III, da Lei 14.133/21.

[6] Art. 32, §1º, V, da Lei 14.133/21.

[7] Art. 7º, §4º, 32, §1º, XI, da Lei 14.133/21.

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