No último dia 8 de abril, por unanimidade de votos e de acordo com o voto do ministro relator Rogerio Schietti Cruz, a 3ª Seção do STJ decidiu afetar três recursos especiais ao rito dos recursos repetitivos para discutir a possibilidade de aplicação retroativa de alteração jurisprudencial mais benéfica ao acusado.
O recurso especial 2150091, um dos afetados, discute condenação criminal, mantida em revisão criminal, às penas de penas de 8 anos e 6 meses de reclusão, mais multa, e de 1 ano e 3 meses de detenção, mais multa, pela prática dos crimes de tráfico de drogas e posse irregular de arma de fogo de uso permitido. Aduz o recorrente que, desde a sua condenação, houve alteração na jurisprudência do STJ e STF sobre o ingresso policial em domicílio sem mandado judicial e que, portanto, o entendimento mais benéfico deveria retroagir ao caso concreto, com a sua consequente absolvição.
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O recurso foi admitido pelo Tribunal de Justiça de Alagoas como representativo da controvérsia com o objetivo de “definir se a mudança de entendimento jurisprudencial autoriza ou não a sua aplicação retroativa no âmbito de revisão criminal”.
O debate do tema não é novo. Em trabalho anterior, em 2022, já alertávamos que as mudanças de entendimento jurisprudencial no âmbito criminal merecem atenção[1].
Inexistem dúvidas quanto à vigência e aplicação da irretroatividade da lei penal desfavorável e retroatividade da mais benéfica ao acusado, quando se trata de legislação escrita (Código Penal, leis penais esparsas). Como aponta Mariângela Gama de Magalhães Gomes, o princípio da irretroatividade é voltado precipuamente ao legislador, limitando seu poder e evitando danos aos direitos fundamentais do cidadão[2].
Quanto ao processo penal, sabe-se que devido ao princípio do tempus regit actum, as alterações legais têm efeito imediato a partir da sua entrada em vigor, segundo o qual o ato processual deve ser regido pela norma em vigor quando da sua aplicação (art. 2o, CPP).
A discussão, no entanto, ganha outros contornos quando se trata da alteração jurisprudencial, já que o marco temporal de aplicação das leis escritas é mais facilmente delimitado quando comparado ao entendimento dos tribunais, pois deriva de julgamento de casos concretos, cujos fatos já ocorreram e os processos estão em tramitação.
Mesmo em casos de julgamento de ações de constitucionalidade, já ocorreram anteriormente fatos delituosos que podem ser relacionados com o objeto do julgamento, surgindo a discussão sobre a aplicação do entendimento de direito material a esses fatos pretéritos ou não. Ademais, as mudanças de entendimento no âmbito criminal dividem-se em alterações no direito material e direito processual, sendo a primeira categoria ainda subdividida em alterações em prejuízo ou benefício do acusado.
Por isso, entendemos que a análise da questão deve ser feita de maneira dividida, tal como proposto inicialmente: alterações in bonan partem ou in malam partem. Sabe-se que o overruling (superação do entendimento) não modifica ou revoga a legislação, operando apenas uma modificação de entendimento perante os Tribunais Superiores que trazem consequências aos processos em curso e àqueles já transitados em julgado.
As alterações jurisprudenciais benéficas ao acusado (in bonan partem) devem ter o mesmo tratamento concedido à legislação, qual seja, de aplicação imediata e consequente retroatividade[3]. Este é o entendimento de Fabiano Pimentel quando afirma que “tanto a mudança da norma contida na lei, quanto a mudança da ratio decidendi extraída do precedente em matéria criminal, sendo mais benéficas ao agente, devem ensejar a aplicação retroativa”[4].
No mesmo sentido, Mariângela Gama de Magalhães Gomes sustenta que “assim como se dá quando uma norma penal mais benéfica revoga a anterior, também é possível sustentar a possibilidade de se aplicar a nova interpretação legal mais favorável ao réu e aos fatos a serem julgados, mesmo tendo ocorrido antes da mudança de entendimento”[5].
A discussão sobre a retroatividade do entendimento jurisprudencial mais benéfico ao acusado conduz à análise da possibilidade de uso da revisão criminal pela alteração de entendimento, hoje não aceita pelo STJ[6].
Esta é a questão justamente posta neste Recurso Especial 2150091, no qual a condenação criminal foi mantida em revisão criminal julgada improcedente, mesmo reconhecida a alteração da jurisprudência do STJ e STF sobre questão jurídica que levou à aplicação da reprimenda.
O Código de Processo Penal brasileiro não prevê, dentre as hipóteses de cabimento da revisão criminal, a modificação jurisprudencial, independentemente do efeito (persuasivo ou vinculante) do novo precedente judicial. Situação oposta ao direito português, que prevê a possibilidade de revisão da condenação após a declaração de inconstitucionalidade de norma de conteúdo desfavorável ao acusado (art. 449, n.1, alínea f do CPP português)[7].
A doutrina, por sua vez, aponta a possibilidade de extensão das hipóteses de cabimento para abarcar a revisão criminal em decorrência da alteração jurisprudencial benéfica ao acusado. Neste sentido é o posicionamento de Ada Pelegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho quando afirmam que “não apenas a lei em sentido estrito (como emanação do Poder Legislativo), mas todo o direito em tese (incluindo, evidentemente, a Constituição), desde que afrontado, justificam a revisão criminal”[8].
Fabiano Pimentel considera que o art. 621, inc. I, do Código de Processo Penal, que estabelece as hipóteses de cabimento da revisão criminal, deve ser lido de maneira mais ampliativa, abarcando não apenas o texto legal, mas também a norma que se extrai dele por meio da interpretação judicial. Assim, se houver overruling e a alteração da ratio decidendi for mais benéfica ao acusado, há fundamento para a revisão criminal[9].
Por sua vez, Odone Sanguiné, também sustenta que “é admissível ação revisional pelo condenado pedindo a aplicação da jurisprudência mais benigna, desde que consolidada ou mesmo sumulada.”[10]
Sustentamos, há alguns anos, que o novo precedente vinculante, benéfico ao acusado, deve retroagir justamente para garantir que situações com as mesmas hipóteses fáticas recebam tratamento isonômico. Caso contrário, acusados condenados terão tratamento desigual e mais gravoso em relação aos acusados cujos processos estão em tramitação, o que é inaceitável[11].
Portanto, em boa hora a afetação dos recursos para discussão do tema e estabelecimento de premissas seguras sobre a (ir)retroatividade da mudança do entendimento, especialmente frente a uma maior e crescente preocupação da sociedade com o tratamento isonômico do jurisdicionado e a previsibilidade das decisões judiciais.
[1] GALVÃO, Danyelle. Precedentes judiciais no processo penal. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 262-271.
[2] GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito Penal e interpretação jurisprudencial. Do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 145-146.
[3] CADOPPI, Alberto. Il valore del precedente nel diritto penale. Uno studio sulla dimensione in action della legalitá. 2. ed. Torino, Itália: G. Giappichelli, 2014, p. 318.
[4] PIMENTEL, Fabiano. O overruling como fundamento para a revisão criminal. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2016, p. 230-231. No mesmo sentido, SILVA, Bruno Nova. A (ir)retroatividade das alterações jurisprudenciais: uma nova leitura do princípio da legalidade penal em meio à teoria dos precedentes. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Faculdade de Direito da Universidade da Bahia. Salvador, 2013, p. 137; KIRCHER, Luís Felipe Schneider. Uma teoria dos precedentes vinculantes no processo penal. Salvador: JusPodivm, 2018.cit., 2018, p. 184/186.
[5] GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Op. cit., 2008, p. 154.
[6] “3. As jurisprudências do STJ e do STF se consolidaram em que não é admissível a utilização da revisão criminal e, por consequência, de habeas corpus substitutivo desta para aplicar retroativamente jurisprudência que se alterou após o trânsito em julgado do feito no qual se pretende a incidência do novo entendimento”. (STJ – 6ª T. – AgRg no HC 974938 – rel. Min. Og Fernandes – j. 08/04/2025 – Dje 22/04/2025).
[7] CORREIA, João Conde. O ‘mito do caso julgado’ e a revisão propter nova. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 574.
[8] GRINOVER, Ada Pellegrini, GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no Processo Penal. 7. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 251.
[9] PIMENTEL, Fabiano Cavalcante. Op. cit., 2016, p. 224-225 e 230-232. No mesmo sentido, QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 102; SANGUINÉ, Odone. Irretroatividade e retroatividade das alterações da jurisprudência penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 31, jul./set. 2000, p. 144-169; GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Op. cit., 2008, p. 155-158.
[10] SANGUINÉ, Odone. Prefácio. In: LEAL, Saulo Brum; KINZEL, Inez Maria. Notas sobre revisão criminal. Doutrina e jurisprudência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994, p. 10.
[11] SANGUINÉ, Odone. Op. cit., 1994, p. 10.