A decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em exigir a retenção de receita para venda de medicamentos análogos ao GLP-1, como semaglutida (presente em Ozempic e Wegovy), liraglutida (Saxenda e Victoza), tirzepatida (Mounjaro), e dulaglutida (Trulicity), tem sido observada como “acertada” e “fundamental” por especialistas da área da saúde. Ao JOTA, representantes das entidades de endocrinologia e metabologia apontam que a medida poderá reduzir o uso indiscriminado dos medicamentos por pessoas que não convivem com diabetes e nem obesidade e que vinham, em sua grande maioria, utilizando as formulações por conta própria, ou por influência de “terceiros”.
Neuton Dornelas, médico endocrinologista e presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), destaca que o maior impacto da determinação da Anvisa será o de minimizar o volume de venda para quem não possui indicação de usar os medicamentos. Por meio da medida, segundo ele, haverá a necessidade obrigatória de um prescritor, que passará a ser identificado, assim como a identificação do usuário e do estabelecimento que fará a dispensação.
A decisão de 16 de abril da agência reguladora foi unânime em aprovar um controle mais rigoroso na prescrição e na dispensação desses medicamentos, também conhecidos como “canetas emagrecedoras”. No Brasil, eles foram inicialmente aprovados para o tratamento da diabetes tipo 2 e, mais recentemente, para a perda de peso em pacientes obesos ou com sobrepeso. Segundo a agência, a medida visa justamente “proteger a saúde da população brasileira”, visto que foi observado um número elevado de eventos adversos relacionados ao uso desses medicamentos fora das indicações aprovadas por ela.
Até setembro de 2024, a Anvisa afirma que recebeu 1.165 notificações de uso fora da indicação aprovada de agonistas do GLP-1, sendo 98% correspondentes à liraglutida e semaglutida. Conforme informações apresentadas no debate, 78% das notificações de suspeitas de eventos adversos relacionados à semaglutida foram recebidas nos últimos dois anos e eram de uso em indicação não aprovada ou uso off-label.
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Dornelas também destaca que o tempo de validade da receita – de até 90 dias a partir da data de emissão – não prejudicará os pacientes e nem os colocará em risco de interrupção de tratamento — que, quando indicado, deverá ser duradouro por se tratar de doenças crônicas. Embora apoie a decisão, avaliou que agora será necessário o aumento da fiscalização sobre o “mercado paralelo”, bem como sobre as manipulações por farmácias magistrais.
Tanto a SBEM quanto outras sociedades científicas já olhavam com preocupação o uso indiscriminado dos medicamentos, diante do aumento expressivo de seu consumo, feito em muitas ocasiões sem prescrição ou orientações médicas. “Havia a preocupação com o uso indiscriminado, inclusive por pessoas que não convivem nem com diabetes e nem com obesidade, por potenciais malefícios a elas, mas também por eventual dificuldade de acesso aos referidos medicamentos por quem deles realmente necessitam”, afirmou, Dornelas.
Apesar de também considerar correta a determinação da Anvisa em reter as receitas das medicações da classe dos análogos de GLP-1, Ricardo Barroso, endocrinologista e diretor da regional de São Paulo da SBEM, classificou a decisão como “talvez um pouco atrasada”, por já haverem discussões antigas sobre o abuso do uso indiscriminado, assim como do desacompanhamento médico na utilização desses medicamentos.
“Mas foi na hora que deveria ser, digamos assim, antes tarde do que nunca, já que houve essa percepção tanto no meio médico quanto no mercado farmacêutico que estava havendo esse abuso, com algumas consequências importantes à saúde daquelas pessoas que estavam usando sem esse acompanhamento”, assinalou o especialista.
Contudo, pontuou que no meio endocrinológico a determinação da agência reguladora foi vista com muita “responsabilidade”. Em seu ponto de vista, a medida irá ajudar com que a população tenha um controle mais adequado do uso da medicação e mais respaldo para o manejo das complicações advindas do uso das formulações dos medicamentos análogos ao GLP-1.
Para Antônio José Gonçalves, presidente da Associação Paulista de Medicina (APM), a decisão da Anvisa é fundamental para que haja um controle maior sobre a venda das canetas emagrecedoras. Porém, o especialista ressaltou que, a partir de agora, as autoridades e a Receita Federal devem reforçar a vigilância, visto que tem se observado o aumento do contrabando das referidas “canetas emagrecedoras” nos aeroportos do Brasil.
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O especialista também destacou que a medida enfatiza a importância da avaliação médica e o controle da venda das formulações de ozempic e similares, a fim de se coibir o seu uso indiscriminado. “A obesidade é uma doença que se espalha pelo mundo e tem graves consequências. Em alguns casos, esses medicamentos podem causar efeitos colaterais graves”, disse. “É bom lembrar que as canetas são usadas para tratar diabetes tipo 2 em adultos, especialmente quando o açúcar no sangue não está bem controlado com dieta e exercícios”, concluiu Gonçalves.
A medida da diretoria colegiada da Anvisa foi caracterizada como “acertada” por Henderson Fürst, advogado de Direito Médico e da Saúde e professor de Bioética do Hospital Israelita Albert Einstein. “Uma das funções da atividade regulatória é justamente estimular ou desestimular o comportamento das partes impactadas pela regulação”, afirmou.
Para ele, com a alta popularização dos medicamentos emagrecedores sem o devido acompanhamento de profissionais médicos, a ponto de sequer ter disponibilidade do medicamento para pacientes diabéticos, surgiu um risco relevante à saúde pública brasileira e seus cidadãos pelo uso indiscriminado e não monitorado. Assim, em sua avaliação, condicionar a venda à receita médica indica que ocorrerá uma adequada supervisão médica e acompanhamento do uso das formulações dos medicamentos – para que seja feito de forma adequada e compatível ao quadro de saúde do paciente.
Uso irracional dos medicamentos pode causar ‘efeitos diversos’ na saúde
Caio Victor Coutinho, nutricionista e conselheiro do Conselho Federal de Nutrição (CFN), alerta para os efeitos adversos que o uso dos medicamentos análogos ao GLP-1 ou outras estratégias que não tenham acompanhamento profissional podem trazer para a saúde das pessoas. Segundo ele, as dietas restritivas e os processos drásticos de comportamento em busca do emagrecimento – a exemplo do uso das “canetas emagrecedoras” – afetam diretamente a qualidade de vida dos pacientes.
De acordo com Coutinho, é comum que o uso dessa medicação sem orientação médica provoque sintomas como mal-estar, câimbras, diarreia, dores de cabeça e enxaqueca frequentes, cansaço excessivo e estresse, podendo até mesmo causar burnout em alguns casos mais extremos.
“Quando se começa a utilizar esses medicamentos que promovem esse efeito de redução de apetite, essa redução muito drástica de calorias também está muito associada à redução de consumo de nutrientes e de polifenóis, que são promotores de saúde”, explicou o especialista. Por isso, ilustrou ainda que o uso irracional dos medicamentos como semaglutida pode também acarretar em alterações frequentes de humor e aumento da infertilidade, tanto em mulheres quanto em homens.
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Assim como no caso dos suplementos alimentares, Coutinho ressaltou as falhas na qualidade das informações encontradas nas redes sociais sobre as formulações. Segundo ele, tais informações dispostas são muitas vezes “superficiais, generalistas e sem uma contextualização” adequada do uso do medicamento. “É como se o paciente se abdicasse da responsabilidade de promover hábitos saudáveis. Ele quer ser emagrecido, mas não quer emagrecer”, destacou.
“Nós da nutrição não somos prescritores de medicamento. Nós buscamos mudar comportamentos. Então, se a Anvisa viu essa medida de reter as receitas como uma maneira de coibir as prescrições inadequadas e o uso irracional dos medicamentos, a nossa agência sanitária está correta nesse sentido”, concluiu o conselheiro.
Reação das farmacêuticas
A farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk, fabricante do Ozempic e Wegovy, afirmou ao JOTA por meio de nota que recebeu com “naturalidade” a decisão da Anvisa sobre a retenção de receita de medicamentos análogos de GLP-1, e que a determinação não tem relação com a segurança e eficácia dos medicamentos registrados no Brasil.
Segundo a Novo Nordisk, as pesquisas clínicas relacionadas à liraglutida e semaglutida são robustas e comprovam o perfil de segurança das moléculas. Além disso, a farmacêutica disse que “compartilha das mesmas preocupações da Anvisa quanto ao uso irregular de medicamentos e fora de indicação em bula, e reforça que a segurança do paciente e seu principal compromisso”.
“A Novo Nordisk se mantém aberta ao diálogo e à colaboração com as autoridades de saúde, combatendo sempre, por meio de campanhas de conscientização e ações de educação, a automedicação e o uso off-label, bem como denunciando casos de falsificação, comercialização e consumo de medicamentos análogos de GLP-1 irregulares”, concluiu a empresa em nota.
Também procurada para comentar os impactos da decisão da agência reguladora nos investimentos do setor, a empresa farmacêutica suíça Novartis, que nos últimos anos tem investido na pesquisa clínica no Brasil, preferiu não se manifestar acerca da discussão.
Conforme o JOTA também já destacou, para a Interfarma, associação que reúne farmacêuticas de pesquisa, a decisão da Anvisa de estabelecer a obrigatoriedade de retenção de receita não enfrenta a principal causa do problema. “Há um mercado crescente de manipulação do produto, sem que controle de segurança ou medidas para atestar a qualidade sejam realizados”, afirmou o presidente da entidade, Renato Porto.