Entre o norte do dolo genérico e o sul do dolo específico

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) prepara-se para uniformizar a interpretação de uma das alterações legislativas que mais impactaram o microssistema de improbidade administrativa: a necessidade ou não de comprovação do chamado dolo específico para a condenação de agentes públicos.

Provocado pelo Parquet federal – que apontou a multiplicidade de recursos e a falta de critérios objetivos nos tribunais locais –, o STJ reconheceu, no âmbito do Recurso Especial 2.183.843, a existência da controvérsia jurídica multitudinária e decidiu submetê-la ao rito dos recursos repetitivos, quanto à análise do elemento subjetivo exigido para a configuração dos atos de improbidade.

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A reforma trazida pela Lei 14.230/2021 representou uma inflexão importante na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), ao exigir expressamente a presença do dolo para a caracterização das três modalidades de improbidade – enriquecimento ilícito (artigo 9º), lesão ao erário (artigo 10º) e violação a princípios da Administração Pública (artigo 11).

A mudança foi proposta para conferir maior segurança jurídica aos gestores, afastando a responsabilização por culpa ou por erros administrativos sem intenção maliciosa. O texto legal, entretanto, não especifica o tipo de dolo requerido, dando margem à atual divergência interpretativa: seria suficiente o dolo genérico – isto é, a vontade consciente de praticar o ato – ou seria necessário comprovar dolo específico, entendido como a intenção direcionada a um fim ilícito determinado?

Essa tensão interpretativa tem sido tangenciada em julgados do próprio STJ. No AREsp 2.027.433/PB, o tribunal indicou que o Tema 1.199 do STF – que trata da aplicação retroativa da nova LIA – não se refere à necessidade de comprovação do dolo específico do agente condenado pela prática de ato de improbidade administrativa.

Em outro precedente (AREsp 1.587.243/SP), reforçou-se que “nos termos do julgamento do Tema 1.199 da repercussão geral a aplicação retroativa da Lei n.º 14.230/2021 somente é permitida aos atos de improbidade administrativa culposos, ainda não transitados em julgado, não tendo sido contemplada a exigência de dolo específico com fundamento na nova redação legal.”

Sob a ótica da suficiência de dolo do tipo genérico, bastaria a vontade consciente de violar deveres funcionais para configurar improbidade, sobretudo nos casos do artigo 11, que tratam da violação aos princípios da Administração Pública. Por outro lado, a exigência do dolo específico poderia representar, na prática, uma blindagem quase total a condutas ético-administrativas reprováveis, dada a dificuldade de se demonstrar uma intenção subjetiva precisa.

Partindo de uma perspectiva mais garantista, a exigência de dolo específico está em sintonia com o espírito da reforma de 2021, cujo pano de fundo foi a contenção do uso expansivo, e muitas vezes desproporcional, da LIA. A proposta do legislador foi restringir a responsabilização aos casos de má-fé qualificada, evitando punições por erros formais ou desacertos administrativos sem desonestidade.

Além disso, essa leitura se harmoniza com o artigo 28 da LINDB[1], que funciona como standard de culpabilidade – exigindo dolo ou erro grosseiro do agente público para responsabilizá-lo.

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A uniformização, que será firmada sob o rito de recurso representativo de controvérsia (RRC), transcenderá o debate técnico. Trata-se de um verdadeiro divisor de águas quanto ao padrão de probidade exigido dos agentes públicos, com repercussões imediatas em milhares de processos suspensos no país. O alinhamento hermenêutico a ser firmado poderá rever condenações e orientar definitivamente a atuação de órgãos de controle, advocacia pública e magistratura.

Ao definir se a bússola da improbidade deve se guiar por um dolo específico ou se basta a consciência da ilicitude do ato, a Corte Superior, finalmente, terá a oportunidade de esclarecer a interpretação quanto ao elemento subjetivo configurador do ato ímprobo no contexto do novo modelo previsto pela LIA reformada – e, com isso, reforçar a segurança jurídica e o equilíbrio entre controle e governabilidade no setor público.


[1] Art. 28.  O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

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