O naufrágio do Titanic não ocorreu por falta de tecnologia, mas por excesso de confiança na invulnerabilidade. No campo tributário, o excesso de confiança em teses consolidadas pode ser igualmente desastroso. O Tema 1.079 do STJ mostra como a confiança cega na vitória judicial, sem movimentação prévia, pode levar a perdas irreversíveis.
O sobrestamento e o paradoxo das decisões favoráveis
O sistema de precedentes qualificados no Brasil, especialmente os recursos repetitivos do STJ, prevê o sobrestamento dos processos que versem sobre a mesma controvérsia até a definição da tese. A intenção é nobre: evitar decisões contraditórias e promover segurança jurídica. Quando o tema é decidido, todas as decisões passam a seguir a tese firmada, evitando distorções e assegurando tratamento igualitário aos casos semelhantes.
Como funciona esse sistema? Segundo o art. 1.037, § 4º, do Código de Processo Civil: “Os recursos especiais e extraordinários sobrestados na origem permanecerão suspensos até o pronunciamento final do tribunal superior respectivo.” Ou seja, quando uma mesma controvérsia jurídica passa a se repetir com frequência nos tribunais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, pode afetar o tema ao rito dos recursos repetitivos. A partir dessa afetação, todos os processos que tratam da mesma matéria nas instâncias inferiores ficam suspensos (sobrestados) até que o tribunal superior julgue e fixe a tese jurídica aplicável a todos os casos.
Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF
O problema surge aos contribuintes que aguardam a solução definitiva, muitas vezes com base em orientação jurídica prudente, acabam sendo prejudicados. O Tema 1.079 exemplifica essa distorção: mesmo quem ajuizou ação antes da afetação e teve o processo suspenso, sem decisão favorável, perdeu o direito à aplicação retroativa da tese firmada. Para não ser prejudicado pela modulação de efeitos, além de ter proposto a ação antes do julgamento, precisava de uma decisão favorável sobre o tema, mas como isso se os processos estavam sobrestados?
Em maio de 2024, o STJ concluiu o julgamento do Tema 1.079, decidindo que, após a entrada em vigor do art. 1º, inciso I, do Decreto-Lei nº 2.318/1986, o recolhimento das contribuições destinadas ao Sesi, Senai, Sesc e Senac não está submetido ao limite máximo de 20 salários-mínimos. Devido à mudança de entendimento jurisprudencial, o STJ modulou os efeitos da decisão, estabelecendo que a limitação da base de cálculo seria aplicada até a data da publicação do acórdão para as empresas que ingressaram com ação judicial ou protocolaram pedidos administrativos até o início do julgamento do Tema 1.079 e, necessariamente, obtiveram decisão favorável.
A modulação irreal e a ausência de decisões administrativas ou judiciais
A modulação de efeitos aplicada pelo STJ no Tema 1.079 privilegiou apenas os contribuintes que haviam obtido decisão favorável antes do início do julgamento do repetitivo. Isso inclui liminares e sentenças, mas exclui quem aguardava, mesmo de boa-fé, com pedido pendente ou sem manifestação formal. A lógica parece ignorar que o sobrestamento, muitas vezes, é automático e impede a análise de mérito. Pior ainda, a via administrativa — que deveria ser o caminho natural em matéria tributária — também não garante proteção se o pedido não foi deferido.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Até hoje, não há consenso sobre o que se entende por decisão favorável na via administrativa. Isso porque, tecnicamente, para que exista uma decisão administrativa favorável, seria necessário que houvesse uma autuação fiscal e a instauração de um processo administrativo regularmente julgado, com a consequente prolação de decisão de mérito favorável ao contribuinte.
No entanto, a maioria das teses aproveitadas pela via administrativa ocorre por meio de declarações de compensação feitas pelo contribuinte, que, na ausência de manifestação do fisco no prazo de cinco anos, são consideradas homologadas tacitamente, com base na decadência do direito de a Fazenda se manifestar. Nesses casos, não há um ato administrativo formal de homologação, mas sim o decurso do prazo legal, o que gera controvérsias sobre se isso configura ou não uma “decisão favorável” para fins de modulação de efeitos em temas repetitivos.
A lição aprendida com o Tema 1.079
A lição que se extrai do Tema 1.079 é clara: esperar é arriscado. Não basta ter razão jurídica. É necessário ter se posicionado formalmente antes do julgamento da tese — judicial ou administrativamente. O cenário incentiva o ajuizamento de ações cautelares ou aproveitamentos administrativos dos temas, para garantir proteção contra eventual modulação futura. Isso contradiz o espírito da racionalização processual e mostra que, hoje, a segurança jurídica depende da precaução e da proatividade.
Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF
No contexto da busca por maior segurança jurídica e racionalidade procedimental, o aproveitamento administrativo se apresenta como um caminho legítimo e eficaz para a formalização da expectativa de direito do contribuinte. Isso porque, diferentemente do processo judicial, a compensação realizada na via administrativa está protegida pelo prazo decadencial de cinco anos previsto no art. 150, §4º, do Código Tributário Nacional. Esse prazo não sofre interrupção ou suspensão pelo sobrestamento de temas repetitivos no Judiciário, o que confere ao contribuinte maior previsibilidade quanto à estabilização de seus atos. Assim, ao formalizar o pedido administrativo dentro do prazo legal, o contribuinte se coloca em situação jurídica segura, com a expectativa de homologação tácita e, se houver modulação futura, com maiores chances de enquadramento entre os beneficiados. Trata-se, portanto, de uma estratégia prudente e alinhada à lógica da autodeclaração que rege o sistema tributário nacional.
Conclusão
Assim como o Titanic, empresas excessivamente conservadoras — que se consideram seguras demais para afundar — podem descobrir tarde demais que o risco já estava no horizonte. A tempestade da modulação só poupa aqueles que, com antecedência, já haviam construído seus botes salva-vidas: pedidos administrativos ou liminares judiciais. Nessa travessia, a prudência deixa de ser uma opção e torna obrigatória uma atitude estratégica.