As implicações regulatórias da restrição do Ozempic pela Anvisa

O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, durante campanha à reeleição no ano passado, declarou: “O Rio vai ser uma cidade que não vai ter mais gordinho, todo mundo vai tomar Ozempic nas clínicas da família”. Já em sua posse, afirmou que criaria “um programa de combate à obesidade que já estabelece as bases para aquisição da semaglutida, o Ozempic, a partir da quebra da patente do medicamento”.

No entanto, os planos do prefeito dificilmente se concretizarão tão rapidamente. Isso porque a Anvisa tornou obrigatória a retenção de receita para venda de medicamentos análogos ao GLP-1, como semaglutida (presente em Ozempic e Wegovy), liraglutida (Saxenda e Victoza), tirzepatida (Mounjaro), e dulaglutida (Trulicity).

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A medida foi aprovada durante a 6ª Reunião Ordinária Pública da Diretoria Colegiada (Dicol), que resultou em alterações à RDC 471/2021 e na publicação de uma nova Instrução Normativa. Com isso, medicamentos à base dessas substâncias passaram a ser dispensados apenas mediante receituário branco em duas vias, com uma delas retida para registro no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC).

No Brasil, esses medicamentos foram inicialmente aprovados para o tratamento da diabetes tipo 2 e, mais recentemente, para a perda de peso em pacientes obesos ou com sobrepeso. Segundo a Anvisa, a restrição se justifica pelo uso inadequado dessas substâncias.

Contudo, uma leitura atenta dos votos emitidos durante a reunião coloca em dúvida a solidez da justificativa apresentada. Um dos votos cita: “outra reportagem, veiculada pelo programa Fantástico, também destaca o uso indiscriminado que tem sido observado para a medicação a base de semaglutida.

Em outro voto, lê-se que “em busca realizada na internet, para os últimos dois anos, quando examinada a tendência para a busca de nomes comerciais, no Brasil, desses medicamentos, observa-se um crescimento importante e sustentado ao longo do período”, mencionando até marcações com hashtags.

Esses trechos revelam que a decisão da Anvisa pode ter se baseado mais em percepções midiáticas do que em evidências técnicas robustas. Após solicitação à Câmara Técnica de Produtos Farmacêuticos (CTFARM) para apreciação da questão, constatou-se que “os riscos podem ser exponenciais”. Assim, diante “do possível acesso facilitado” e “dos potenciais riscos de uso inadequados”, estaria justificada a exigência de retenção de receita para venda desses medicamentos.

A decisão da agência parece adotar uma postura consequencialista e paternalista, assumindo o papel de “protetora” da população que faz uso da medicação para emagrecimento — extrapolando, inclusive, sua competência técnica.

Mais preocupante ainda é o fato de o rito regulatório não ter sido devidamente respeitado. Foi dispensada tanto a apresentação da Análise de Impacto Regulatório (AIR) quanto a realização de Consulta Pública, que permitiria à sociedade civil participar do debate. A justificativa de urgência, que poderia validar tais exceções, não foi demonstrada de forma convincente.

Em suma, embora a preocupação com o uso indiscriminado de medicamentos como a semaglutida seja legítima, a forma como a Anvisa conduziu essa restrição levanta dúvidas sobre a solidez técnica e jurídica da medida. O excesso de zelo, sem o devido respaldo em evidências científicas consistentes e sem a participação da sociedade no processo decisório, compromete a legitimidade da ação regulatória.

A proteção à saúde pública é essencial, mas deve ser exercida com equilíbrio, transparência e respeito à autonomia dos pacientes e à responsabilidade dos profissionais de saúde.

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