Está em curso desde o último dia 14 de abril um importante debate envolvendo a política de defesa da concorrência norte-americana, com potenciais implicações extraterritoriais. O caso suscita questões sobre o poder econômico das grandes empresas de tecnologia e sobre como as autoridades concorrenciais devem atuar em relação aos mercados digitais. No centro do debate, como se verá abaixo, está uma pergunta crucial: a estratégia “comprar em vez de competir” da Meta constituiu uma forma de monopolização ilegal do mercado de redes sociais?
A FTC (Federal Trade Commission), uma das autoridades antitruste dos EUA, acusa o conglomerado digital Meta de monopolizar o mercado de redes sociais. Como se sabe, além do Facebook, a Meta controla os aplicativos Threads, Instagram e WhatsApp. Estes dois últimos foram adquiridos pela empresa de Mark Zuckerberg em 2012 e 2014, respectivamente. Ambas as operações foram submetidas ao FTC e por ela aprovadas (a Meta pagou US$ 1 bilhão pelo Instagram e US$ 22 bilhões pelo WhatsApp).
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
A FTC desde estão monitora as relações de concorrência nos mercados digitais em que as empresas atuam, avaliando os efeitos e desdobramentos das aquisições. No processo em curso, a Meta é acusada de monopolização (artigo 2º do Sherman Act, lei antitruste americana de 1890), conduta que guarda semelhanças com o abuso do poder econômico no direito brasileiro.
Além disso, a FTC imputa à empresa fundada por Zuckerberg a prática de métodos injustos de competição (unfair methods of competition), conforme previstos na Seção 5(a) do FTC Act 15 USC 45(a) de 1994. Um dos principais argumentos suscitados pela FTC é o de que as aquisições do Instagram e do WhatsApp, na realidade, se traduziram em estratégias para neutralizar o que eram consideradas ameaças competitivas ao Facebook.
Os depoimentos iniciais: a defesa da Meta
Entre 14 e 16 de abril, Zuckerberg testemunhou perante a Corte Distrital de Columbia. O fundador do Facebook afirmou que havia uma justificativa para a compra do Instagram: efeitos de rede em aplicativos de rede social tornam difícil a entrada de novos competidores.
Por uma questão de escala, comprar o Instagram – em vez de desenvolver um aplicativo concorrente ou fazer com que o Facebook fosse ajustado para com ele competir – seria mais vantajoso. “Novos produtos não conseguem muita tração”, razão pela qual seria “melhor comprar do que competir”, chegou a dizer o CEO da Meta.
Sobre o WhatsApp, Zuckerberg descreveu a aquisição como uma forma de atuação estratégica e defensiva relativamente ao modelo de negócios das big tech Apple e Google, que estariam prejudicando a Meta na distribuição aos usuários de dispositivos móveis iOS e Android. De fato, a Meta tem iniciado processos de natureza concorrencial contra esses dois players, inclusive no Brasil, onde o Cade recentemente acolheu um pedido da empresa e instaurou um inquérito administrativo em face da Apple.
Na sequência de Zuckerberg, foi ouvida Sheryl Sandberg, COO da Meta até 2022. A executiva defendeu que os investimentos da Meta contribuíram decisivamente para o sucesso do Instagram e do WhatsApp. Ela contestou o argumento quanto ao poder de monopólio de sua ex-empregadora e argumentou que “desenvolver versus comprar” (build versus buy) é uma análise corriqueira entre empresas de tecnologia. Em outras palavras, as aquisições da Meta, longe de configurar uma estratégia de monopolização, representariam decisões comerciais comuns de expansão no setor.
A primeira semana de julgamento terminou com a oitiva de V. Pappas, presidente interina do TikTok. O TikTok “não é uma rede social”, afirmou, mas um canal de entretenimento, atividade em que não concorre com o Facebook, embora ambos disputem “tempo e atenção” dos usuários.
Desafio analítico: definindo o mercado relevante
Apresentado originalmente em 2020, o caso FTC vs. Meta teve o seu julgamento iniciado apenas em 2025 e ainda tramitará por alguns meses na justiça norte-americana.
De um lado, a FTC tem o ônus de demonstrar que a Meta não teria alcançado o mesmo sucesso (e protagonismo) sem as aquisições do Instagram e do WhatsApp há mais de dez anos.
Já a Meta tem batido na tecla de que o Instagram teria tido dificuldades de crescer sem o Facebook e que o WhatsApp não tinha “ambição suficiente” antes de ser adquirido. Também vem dizendo que quem ganhou com as aquisições, em última análise, foi o consumidor final. O embate, portanto, diz respeito não apenas às aquisições em si, mas também à intenção estratégica a elas subjacente, isto é, se se constituíram como forma para eliminar a concorrência potencial – tática empresária que especialistas têm descrito como killer acquisitions.
Um dos principais tópicos controversos tem a ver com a prova de que, de fato, a Meta tem poder de monopólio. Nesse embate, a discussão mais específica sobre a definição de mercado relevante é vista como central por uma parcela substancial de comentaristas.
A FTC defende que está em questão o mercado relevante de redes sociais pessoais. Os maiores rivais aqui seriam o Snapchat e MeWe. Mas a Meta contesta essa delimitação, que considera restritiva por excluir o que considera outros rivais efetivos, como os aplicativos X (ex-Twitter), LinkedIn, Pinterest e Reddit. E, sobretudo, argumenta que o TikTok (com mais de 1,5 bilhão de usuários no mundo) também deve, com suas inovações e aperfeiçoamentos, compor o espectro de competidores do Instagram e do WhatsApp, para efeitos da análise antitruste
A depender de como o mercado venha a ser definido, o tamanho da fatia de mercado da Meta será maior ou menor, o que poderia impactar seu enquadramento como monopolista. Por isso, a consideração do TikTok pode ser decisiva. Jennifer Newstead, legal counsel da Meta, afirma que “até um adolescente de 17 anos sabe que o Instagram compete com o TikTok, entre outros apps”.
Se a Corte considerar o TikTok, a participação de mercado da Meta no segmento de “personal social networking services (PSN)” é de menos de 60% de market share. Sem o TikTok, sua fatia sobe para 85%. Como destacado acima, o TikTok nega estar no mesmo mercado relevante que o Instagram – argumentando atuar no mercado de “plataformas de entretenimento”.
A FTC busca minimizar o impacto dessa discussão e argumenta que sequer precisaria definir um mercado relevante. Isso porque haveria “evidências diretas de poder de monopólio” – usualmente associado aos preços praticados, mas no caso concreto atribuído à deterioração do serviço (mais anúncios, menos privacidade e menos inovações).
Ainda, não existe clareza quanto ao market share suficiente para caracterizar o poder de mercado. Os precedentes referentes à aplicação do art. 2º do Sherman Act não estabelecem um limiar, diferentemente da legislação brasileira, que cria uma presunção relativa de posição dominante a partir de 20% de participação de mercado. Percentuais mais baixos (inferiores a 50%) com elevadas barreiras à entrada já foram associados ao poder de mercado nos EUA, segundo Brendan Benedict, que está cobrindo o julgamento.
Para além do antitruste: o debate regulatório e sua economia política
Em matéria recente, a The Economist considera o caso contra a Meta fraco do ponto de vista concorrencial, e elenca os motivos pelos quais Zuckerberg merece ganhar no mérito. Dentre os pontos, está a surpreendente afirmação de que “a ideia de que os consumidores estariam pobremente servidos no mercado de redes sociais nos últimos anos não se coaduna com as horas de tempo extra que eles vêm dedicando a essas redes”.
É uma visão, no mínimo, controvertida (para não dizer questionável), já que gastar tempo ou dinheiro com um produto ou serviço não é, necessariamente, um indicativo de qualidade. O aumento do tempo despendido online pelos consumidores, sobretudo os mais jovens, tem sido motivo de grande preocupação quanto à saúde mental, como ilustra, por exemplo, um recente relatório da OMS.
O que parece ser um consenso nas diferentes coberturas do caso é a atuação política em torno do caso. Zuckerberg bem que tentou evitar a investigação e o julgamento da Meta por parte da FTC: doou US$ 25 milhões à campanha de Donald Trump e, depois de sua vitória, mais US$ 1 milhão para a cerimônia de sua posse. Foi algumas vezes à Casa Branca nas últimas semanas, em uma ação política de lobby e adulação, tentar dissuadir o controvertido presidente americano.
Trump, mesmo tendo demitido os conselheiros democratas Rebeca Slaugher e Alvaro Bedoya (ambos do FTC) em março deste ano, não atendeu aos apelos de Zuckerberg por uma interferência política na investigação de seu império digital. Como se vê, não se pode desconsiderar a economia política dessa disputa: o caso da Meta evidencia como os interesses corporativos e agendas geopolíticas se entrelaçam com a interpretação e aplicação do direito concorrencial.
Possíveis desfechos: o histórico dos break ups
Enquanto acompanhamos esse verdadeiro “drama de tribunal”, é possível especular sobre o desfecho em caso de condenação. Entre outras medidas, a FTC pleiteia o break up da empresa, por meio da venda de ativos. Ou seja, existe a chance real da Meta ter de se desfazer do Instagram e do WhatsApp – ou de pelo menos de um desses aplicativos, por meio de uma obrigação de desinvestimento.[1]
O desinvestimento obrigatório (break up) pode ser um remédio aceitável, a depender da severidade do dano, afirma William Kovacic, conhecida referência acadêmica da literatura de direito antitruste nos EUA. “Mas pode ser uma cirurgia de risco”, ressalva. Tim Wu, outro acadêmico – crítico das big tech – cravou: “Se você quiser agitar as coisas, soluções estruturais são limpas e essencialmente autoexecutáveis — você manda desfazer e vai embora”.
A determinação de “quebra” de empresas por meio de ordens de desinvestimento ou desconstituição de transações consideradas anticompetitivas por parte de autoridades de defesa da concorrência (que, nos EUA, se dá por decisão judicial) não é novidade.
São conhecidos na literatura os casos Standard Oil, fragmentada em 34 empresas menores por meio de decisão da Suprema Corte dos EUA em 1911, em razão de práticas monopolistas na produção, refino, distribuição e comercialização de petróleo. Houve também a quebra judicial da AT&T, empresa integrada de serviços de telecomunicação dos EUA, em 1982. Em ambos os casos, empresas menores resultantes da divisão também se tornaram, com o tempo, agentes econômicos poderosos.
Soluções ou remédios alternativos de natureza estrutural ou comportamental – como a desconstituição parcial, a desintegração vertical, assim como regras de natureza contratual ou societária – podem ser consideradas como alternativas a um break up mais radical. Quem adquire as empresas e ativos alienados também faz diferença. Trata-se de uma difícil decisão na engenharia de direito concorrencial, com implicações complexas de antever no médio e longo prazos.
Implicações para o futuro das big tech
No caso em questão, tudo depende de como FTC e Meta vão expor e demonstrar seus argumentos, bem como do modo como o juiz federal encarregado – o mesmo que ficou mundialmente conhecido por ter confrontado o governo Trump sobre uma ordem de deportação de imigrantes venezuelanos para El Salvador – vai avaliar o conjunto probatório.
Não é possível antever, no momento, o resultado dos debates. De todo modo, em caso de condenação, é provável que Zuckerberg tenha de fazer algum sacrifício, cortando na própria carne. A Meta reluta: “É absurdo que a FTC esteja tentando ‘quebrar’ uma grande companhia americana ao mesmo tempo em que o governo esteja tentando salvar a empresa chinesa TikTok”.
A empresa também contesta o fato de que aquisições feitas há tantos anos estejam agora sendo questionadas pela mesma instituição que antes as chancelou.
Seja como for, o que o caso Meta (e também o caso recente do Google, no qual o break up também vem sendo cogitado quando se trata do navegador Chrome) revela é que as big tech estão definitivamente sob o crescente escrutínio da defesa da concorrência em razão de seu poderio econômico (e político), elevada capacidade financeira e apetite para fazer aquisições. Aguardemos, a seguir, as cenas dos próximos capítulos deste eletrizante julgamento, ao qual voltaremos oportunamente.
[1] Em paralelo, em outra ação em curso, também se discute a possível “quebra”, pelas autoridades norte-americanas, do Google. O Departamento de Justiça argumenta que o Google passou a monopolizar o mercado de anúncios digitais (online advertising market). O Departamento de Justiça dos EUA ainda deve reivindicar que o Google venda o seu navegador Chrome, como uma medida para desfazer o monopólio do conglomerado sobre as pesquisas de internet.