A partir de dados agregados sobre a remuneração dos Três Poderes, na União, nos estados e nos municípios, em um período de 36 anos, a equipe do Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea, traçou um panorama sobre as desigualdades salariais no serviço público de todo o país, considerando dados entre 1985 e 2021. Este estudo não mede a diferença de remuneração entre as carreiras.
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Ainda que seja preliminar por limitações da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho, que não identifica o nível federativo de alguns grupos (sociedades de economia mista e estatais), o trabalho aponta que a remuneração média dos 10% mais ricos chegou, em 1995, a ser 26,8 vezes maior que a dos 10% mais pobres. Em 2021, era 14,61 vezes maior, em um processo gradual e constante de redução da diferença entre a média dos salários mais altos e a dos rendimentos mais baixos.
A pesquisa também revela que a participação dos 20% mais ricos na massa salarial (a soma das remunerações de todos os servidores ao longo de um ano) variou entre 50,81% e 54,98%.
De modo geral, como poderá ser visto a seguir, a desigualdade no serviço público é expressiva, porém menor do que a medida em toda a sociedade brasileira, a partir do cálculo do Índice de Gini. Alguns mitos, como a ideia de que a maioria no serviço público tem altos salários, ficam pelo caminho, considerando que, em 2021, 40% do funcionalismo recebia, em média, o equivalente a dois salários mínimos, em comparação ao valor do salário mínimo em setembro de 2023 (R$ 2.604).
Um dos autores, o pesquisador Sideni Pereira Lima, coordenador do Atlas do Estado Brasileiro, reconhece que as desigualdades podem ser ainda maiores, se forem somadas as vantagens individuais, onde entram os “penduricalhos”, não capturados pela Rais, da mesma forma que o batalhão de 1,38 milhão empregados de estatais e sociedade de economia mista que foram excluídos. O estudo ainda levanta hipóteses importantes sobre a diferença de remuneração entre União, estados e municípios, entre as quais, o descolamento dos servidores federais frente aos demais.
“As diferenças remuneratórias entre cada nível federativo, provavelmente, contribuem mais para a desigualdade no setor público brasileiro do que as diferenças identificadas entre os Três Poderes. Esta é uma hipótese promissora para aprofundar a investigação”, afirma Pereira Lima.
Os servidores e a distribuição das remunerações
A fotografia de 2021 revela que, naquele ano, o Brasil tinha cerca de 10,8 milhões de vínculos civis e militares, nas três esferas da Federação. Aproximadamente 94,4% dos vínculos estavam no Executivo, sendo 60% do total nos municípios, 2,6% no Legislativo e 3,2% no Judiciário. Considerando os Três Poderes, apenas 8% atuavam na esfera federal.
As despesas com salários no setor público naquele ano foram de R$ 641,2 bilhões, com valores corrigidos pelo INPC de março de 2024. Na divisão por salários, o Executivo correspondia a 85,62%, contra 10,49% do Judiciário e 3,88% do Legislativo.
Quando os salários foram divididos por esferas da Federação, o nível federal correspondia a 20,27% do total, contra 37,35% das despesas dos estados e 42,38% dos municípios.
As variações por recorte de remuneração (decis)
No período de 36 anos, houve crescimento real das remunerações médias nas 10 partes iguais (decis) que representam o total de vínculos analisados, apesar da importante variação negativa nos anos finais da série. Os valores foram corrigidos para setembro de 2023, pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidos (INPC).
Na faixa de salários mais baixos, a média do aumento alcançou o maior percentual (53,97%). Nos melhores níveis de remuneração, essa elevação foi de 36,07%. Na segunda melhor faixa (9º decil), o aumento foi de 33,47%, o menor crescimento médio.
Até 2009, mais de 20% dos servidores públicos brasileiros recebiam remunerações mensais, em média, abaixo de R$ 1.302, valor do salário mínimo em setembro de 2023.
Em 2021, mais de 40% dos servidores públicos brasileiros tinham remunerações, em média, menores que R$ 2.604, valor que correspondia a dois salários mínimos em setembro de 2023.
“Embora as remunerações médias no decil mais alto sejam elevadas, são poucas pessoas que ganham muito. Existe, na verdade, um contingente razoavelmente extenso de pessoas que ganham pouco”, resume Sideni Pereira Lima, coordenador do Atlas do Estado Brasileiro e um dos autores do estudo, ao lado do pesquisador Christian Kobunda.
A repartição da massa e a razão salarial
Ao somar as remunerações de todos os servidores ao longo de um ano, o estudo demonstra que a massa salarial apropriada pelos 10% mais ricos variou entre 33,17% (1986) e 38,30% (2009), enquanto os 10% mais pobres ficaram com 1,45%, em 1995. Em 2012, esse grupo ficou com 2,39% do total de remunerações.
Aqui, mais uma vez, é importante lembrar que as vantagens individuais, inclusive parcelas indenizatórios e retroativas, não foram contabilizadas no trabalho, que utilizou dados da Rais/MTE.
Quando a comparação da participação na massa salarial é feita com os 20% mais ricos, percebe-se que, em nenhum momento, esse grupo ficou com menos de 50,81%. Segundo o estudo, “este indicador atingiu o seu valor máximo no ano de 1995, quando a participação dos 20% mais ricos na massa salarial atingiu 54,98%”. A massa salarial dos 20% mais pobres atingiu o mínimo de 3,83%, em 1995, enquanto o valor máximo se deu em 2021, no último ano analisado, alcançando 5,61% do total.
Quando se analisa a razão salarial, o estudo demonstra que remuneração média dos 10% mais ricos foi, no mínimo, 14,61 vezes maior que a dos 10% mais pobres, em 2021. Em 1995, chegou a 26,08, o maior valor da série histórica. Ao analisar a remuneração dos 20% mais ricos, no ano de 1995, eles receberam 14,37 vezes acima dos 20% mais pobres. Já em 2021, essa razão caiu para 9,11 vezes.
De acordo com os pesquisadores, o contínuo decréscimo da razão salarial entre os mais ricos e os mais pobres, a partir de 1995, se deve ao “mais intenso ritmo de crescimento da remuneração do segundo grupo em comparação ao primeiro”.
O Índice de Gini do funcionalismo no Brasil
Apesar das variações entre as menores e maiores remunerações, o Índice de Gini do serviço público se manteve em relativa estabilidade ao longo de 36 anos pesquisados, ficando em patamar inferior (desigualdade menor) quando comparado ao indicador atribuído para o conjunto da sociedade brasileira.
Os pesquisadores salientam que essa métrica pode ter sido impactada pela exclusão de 1,38 milhão de empregados públicos de empresas estatais e sociedades de economia mista, bem como pela não identificação das vantagens individuais que normalmente alcançam as faixas salariais mais altas.
O índice de Gini varia de zero a um, sendo que zero representa igualdade (todos com a mesma renda) e um está no extremo oposto (uma só pessoa detém toda a riqueza). Em 2021, o Índice de Gini para a distribuição pessoal dos rendimentos em todo o Brasil foi de 0,529, o que correspondia ao 8º pior resultado do ranking do Banco Mundial, com 177 países.
No caso do serviço público, ao longo de 36 anos, o índice de Gini Médio foi de 0,477. O pico de desigualdade aconteceu em 1995, quando ficou em 0,502. Em 2021, o indicador estava em 0,450, o menor da série histórica, o que demonstra um desvio relativo de 5,6% se comparado à média.
Embora não exista comparação desse indicador com o serviço público em outros países, os pesquisadores identificaram que a desigualdade no funcionalismo brasileiro equivale a de um país como a Costa Rica, cuja desigualdade foi de 0,472, em 2022, com a 18º pior posição no ranking do Banco Mundial.
Os resultados “apontam a contribuição do funcionalismo para a queda da desigualdade de renda entre 1995 a 2002 e, inversamente, para o seu aumento entre os anos de 2003 e 2010.”
“A partir de 2012, o padrão se inverte, e o Índice de Gini passa a exibir valores ligeiramente abaixo da média, tornando-se mais pronunciados nos dois últimos anos”, complementa o estudo.
Hipóteses do estudo e novas avaliações
A partir deste estudo, o Ipea prepara novas análises que podem comprovar algumas hipóteses consideradas promissoras pelos pesquisadores. A equipe do Atlas do Estado Brasileiro deve se dedicar, a partir de agora, a recortes por cada um dos Poderes e níveis federativos, considerando aspectos como gênero e raça.
Entre as principais apostas está “o aumento da distância entre as remunerações média e mediana dos servidores federais e os correspondentes valores para as esferas subnacionais”.
Segundo o estudo, as diferença de remuneração entre esferas de governo “contribuem de modo mais decisivo para a determinação dos níveis de desigualdade de rendimentos prevalecentes, em que pesem as assimetrias remuneratórias vistas entre Poderes”.
Os pesquisadores afirmam ainda que é preciso investigar as “hierarquias salariais” em cada Poder e ente federado, e o impacto da adoção de sistemas de pessoal de caráter misto sobre a desigualdade de remuneração.
Por fim, outra frente de estudo é a dimensão de desigualdade relacionada a atributos como gênero e raça. Na avaliação dos pesquisadores do Ipea, esse tema tem como principais condicionantes “o pertencimento majoritário de servidores a carreiras com menores níveis de remuneração e o menor acesso desses grupos a postos discricionariamente ocupáveis.”
“A gente tentou fazer um panorama geral e sugerir algumas hipóteses para exploração futura. Pretendemos finalizar esses detalhamentos ainda este ano”, explica Sideni Pereira Lima.