Devedor Contumaz: algumas impressões sobre o PLP 164/2022

Recentemente, noticiou-se a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal do avanço na tramitação do Projeto de Lei Complementar (PLP) 164/2022, que prevê normas gerais para a identificação e controle de devedores contumazes, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência.[1]

A falta de adequada definição, em lei com abrangência nacional, do que poderia ser considerado o devedor de tributos “contumaz”, e um procedimento uniforme para caracterizá-lo, implicam em mais incerteza jurídica. A preocupação é legítima: os contribuintes já afetados pelo “Custo Brasil” correm risco de ter suas condutas criminalizadas. 

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Logo na ementa, o PLP enuncia o pretexto de regular o art. 146-A da Constituição Federal, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, buscando estabelecer normas gerais para a identificação e controle dos chamados “devedores contumazes”. O PLP, portanto, tem a pretensão de cumprir o comando constitucional.

No art. 1º, o PLP enuncia uma de suas intenções, isto é, dispor “sobre normas gerais para o estabelecimento de critérios especiais de tributação para garantir o adequado cumprimento das obrigações tributárias”.

Nota-se certa preocupação com a preservação do direito ao contraditório e ampla defesa, além da necessária regulamentação do processo administrativo para a caracterização do devedor contumaz (arts. 4º, VII, e 9º).

Contudo, o PLP utiliza diversas expressões que carecem de definição precisa. Há ampla margem para interpretações arbitrárias pela administração tributária em geral. E isso é um problema grave, por ser matéria que implica diretamente na definição do que pode ou não ser considerado crime.

Não menos questionável, é a amplitude que possibilitará – como a experiência sugere – a utilização indevida da figura do “devedor contumaz” como sanção política e meio coercitivo para o pagamento de tributos, contrariando a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (enunciado de Súmula n. 70).

Talvez fossem reduzidas as preocupações considerarmos que o art. 3º do PLP 164/2022, em um primeiro momento, restringe a aplicação de “critérios especiais” da norma aos setores de Combustíveis e biocombustíveis, Bebidas alcoólicas e alguns produtos da TIPI, Cigarros com tabaco.

No entanto, posteriormente, o art. 3º expande a aplicação da norma a “outros tipos de produtos e serviços”. Logo, poderão ser enquadrados como “contumazes” quaisquer empresas que, de acordo com processo instaurado por “entidade representativa do setor, de órgão com competência para defesa da concorrência, da agência reguladora setorial ou ainda por iniciativa da administração tributária”, cumulativamente, tenham (i) carga tributária mínima compatível com o lucro presumido; e, (ii) comprovadamente provoquem de “desequilíbrio concorrencial”.

Assim, diversas entidades, inclusive privadas, curiosamente poderão assumir ampla e perigosa competência fiscalizatória e arrecadatória. Perigosa, pois, abre margem para uma sobreposição de interesses políticos e econômicos, num país que infelizmente ainda tem a “carteirada” como costume, conferindo-lhes mais poder. E quem fiscalizará os fiscais?

O art. 6º do PLP 164 diz que se considerará “devedor contumaz” aquele sujeito passivo “cujo comportamento fiscal se caracteriza pela inadimplência reiterada, substancial e injustificada de tributos”, portanto, definindo três critérios possíveis para a inadimplência (reiterada, substancial e injustificada).

Previu-se critério temporal para definir o que é a “inadimplência reiterada”, isto é, se houver falta de recolhimento integral de tributo “em, pelo menos, quatro períodos de apuração consecutivos, ou em seis períodos de apuração alternados, no prazo de doze meses” (§ 1º do art. 6º).

Tal previsão desconsidera as dificuldades práticas existentes, por exemplo, em setores com margens de lucro apertadas e ciclos de operação mais longos. Na Construção Civil, por exemplo, sabe-se que a relação entre investimento e retorno muitas vezes é desafiadora em função de fatores como o tempo entre o início da execução e a entrega de obras, intempéries climáticas e instabilidades macroeconômicas (inflação, alta de juros, preços de materiais, escassez de mão de obra etc.).

Quanto à “inadimplência substancial”, se refere a existência de débitos tributários, cujo devedor esteja na condição de principal ou corresponsável, desde que inscritos em dívida ativa ou declarados e não adimplidos, e que atendam ainda um dos seguintes limites: I – Valor igual ou superior a R$ 15 milhões; ou, II – Valor superior a 30% do faturamento do ano anterior, desde que também seja igual ou superior a R$ 1 milhão.

Tais limites absolutos podem não refletir, por exemplo, o porte e a capacidade econômica (ou de pagamento, a chamada “Capag”) que, inclusive, é critério que tem sido amplamente utilizado e aceito pelos entes da administração pública, em todos os âmbitos, para definir o custo de operações de crédito, concessão de garantias da União, bem como para fins de negociação de débitos tributários e não tributários.[2][3]

Quando se refere a “inadimplência injustificada“, no art. 6º, §3º, o PLP também peca. Embora haja hipóteses exemplificativas, o conceito é altamente subjetivo, pois a autoridade fiscal pode entender que a justificativa apresentada não seria “suficiente”, mesmo em contextos de crise econômica (alínea “a” do inciso VI do art. 6º) ou controvérsia jurídica ainda não “pacificada”.

Causa perplexidade que o texto se refira a ocorrência de “circunstâncias externas”, como “dificuldades financeiras ou operacionais oriundas de crise com significativo impacto no segmento econômico do devedor”, ou, “situações que envolvam estado de calamidade pública”, para caracterizar hipóteses de “inadimplência injustificada” de débitos tributários (inciso VI do § 3º do art. 6º).

Ao contrário, a regra deveria permitir considerar peculiaridades as setoriais, além de fazer alguma ressalva a problemas financeiros práticos da maioria das empresas brasileiras, às vezes temporários, mas, muitas vezes rotineiros, como possíveis crises de fluxo de caixa, sazonalidade, inadimplência de clientes etc.

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Como admitem os ideários da reforma tributária, provavelmente tais problemas poderão ser agravados pela implementação do novo sistema de liquidação financeira das operações (split payment), já previsto na vigente Lei Complementar nº 214/2025 que, implementa parte da reforma tributária, ao instituir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS) e criar o Comitê Gestor do IBS.[4]

Ao prever critérios como “relevância” e “disseminação da controvérsia jurídica” (art. 6º, §3º, III), fazendo remissão ao art. 16 da Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020, o PLP novamente impõe expressões subjetivas, pois, não estão atreladas a critérios objetivos nem a parâmetros práticos realistas e vinculantes, ficando o contribuinte à mercê da vontade fiscal.

Em outro momento, o se autoriza o cancelamento da inscrição do sujeito passivo (leia-se “CNPJ”) com base em “evidências” (art. 8º, incisos I a V) de que a empresa foi constituída, ou, é gerida para fins de “fraude fiscal estruturada”, “interposição de pessoas” ou então participar “de organização constituída com o propósito de não recolher tributos ou de burlar os mecanismos de cobrança de débitos fiscais”.

O texto permite a adoção de medidas extremas com base em “evidências”, quando, naturalmente, se deveria exigir prova robusta ou julgamento definitivo, afastando-se a adoção de presunção, sob o risco de violação do devido processo legal, além do livre desempenho das atividades econômicas das empresas, assegurado no artigo 170, parágrafo único, da Constituição Federal.

O projeto também prevê sanções que levantam dúvidas sobre sua constitucionalidade. Neste sentido, o art. 7º, III, por exemplo, autoriza o ajuizamento de falência ou insolvência civil sem necessidade de prova de cessação de pagamentos (dispensando o preenchimento dos requisitos dos arts. 73 e 94 da Lei 11.101/2005), violando o devido processo legal e a competência do Judiciário. Mais um superpoder.

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O texto prevê que cada ente federativo adote seus próprios critérios especiais de tributação, alíquotas estimadas, regimes especiais e concentrações de incidência (art. 2º), que, caso sancionado como está, implicará em potenciais conflitos, especialmente se estados e municípios aplicarem regras distintas e simultâneas, com as novas disposições da reforma tributária.

É que, a partir de uma futura e eventual sanção definitiva do PLP 164/2022, fatalmente, haverá a necessidade de revisão e readequação de veículos normativos como, entre outros, a Lei Complementar nº 1.320/2018, do Estado de São Paulo, o Decreto nº 47.364/2018 de Minas Gerais, e o Decreto nº 434/2020 de Santa Catarina, cujos critérios atuais não atenderão o PLP, sob pena de inconstitucionalidade.

O PLP 164/2022, ao tentar combater práticas ilegítimas de inadimplência fiscal, corre o risco de comprometer garantias constitucionais, abrir margem para sanções políticas e aumentar a complexidade do sistema. Seu avanço exige amadurecimento técnico, compatibilização com a reforma tributária em curso e respeito aos princípios do devido processo, da boa-fé e da proporcionalidade.


[1] CCJ do Senado aprova texto sobre regulação do devedor contumaz. Valor Econômico. 2025. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2025/04/09/ccj-do-senado-aprova-texto-sobre-regulao-do-devedor-contumaz.ghtml

[2] Medidas do Novo Ciclo de Cooperação Federativa. Tesouro Nacional. Disponível em: https://www.gov.br/tesouronacional/pt-br/noticias/medidas-do-novo-ciclo-de-cooperacao-federativa. Acesso em 11-abr-25.

[3] Capacidade de pagamento para fins de negociação. PGFN. Disponível em: https://www.gov.br/pgfn/pt-br/servicos/perguntas-frequentes/sobre-a-capacidade-de-pagamento. Acesso em 11-abr-25.

[4] Split payment está sendo desenvolvido para ter mínima interferência nas práticas comerciais, ressalta Appy. Ministério da Fazenda. 2025. Disponível: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2025/marco/split-payment-esta-sendo-desenvolvido-para-ter-minima-interferencia-nas-praticas-comerciais-ressalta-appy. Acesso em 11-abr-25.

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