A execução do bem de família de valor elevado

A interpretação adequada do regime jurídico das impenhorabilidades no Direito Civil e Direito Processual Civil pressupõe o reconhecimento de que existem requisitos mínimos para uma existência digna. Neste sentido, há que se reconhecer uma conexão íntima entre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e a preservação do chamado patrimônio mínimo. Estes são os fundamentos do regime das impenhorabilidades no Código de Processo Civil de 2015.

Parece existir certo consenso doutrinário e jurisprudencial no sentido de reconhecer o primado da pessoa sobre o patrimônio, ou seja, o primado do “ser” sobre o “ter”. Neste sentido, a proteção ao patrimônio não pode ser uma finalidade em si mesma, pelo que sempre deve levar em consideração às necessidades específicas das pessoas reais.

Tal mínimo patrimonial não pode ser reduzido a uma categoria abstrata, mas deve ser reconhecido como valor que, na análise do caso, determinará quanto o indivíduo em questão precisa preservar para que tenha uma existência digna.

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Nas palavras do ministro Luiz Edson Fachin: “a noção de patrimônio personalíssimo, assumidamente paradoxal, está agregada à verificação concreta de uma real esfera patrimonial mínima, mensurada pela dignidade humana à luz do atendimento de necessidades básicas e essenciais”.[1] 

Nesta toada, a teoria do patrimônio mínimo termina por se valer de expedientes previstos no direito positivo brasileiro, e que visam resguardar a dignidade da pessoa através da preservação do mínimo patrimonial, como a nulidade da doação universal (artigo 548 CC/02), a incapacidade relativa dos pródigos e a impenhorabilidade. O instituto da impenhorabilidade redunda na mitigação do direito fundamental à tutela executiva, mediante a vedação legal da penhora de determinados bens.

As razões que justificam tal restrição podem ser de ordem econômica, humanitária, ética, política, etc. Assim, a proteção jurídica ao patrimônio mínima parte do pressuposto que a execução não pode “ser utilizada para causar a extrema ruína, que conduza o devedor e sua família à fome e ao desabrigo, gerando situações aflitivas inconciliáveis com a dignidade da pessoa humana”.[2] 

Todavia, em vista da restrição ao direito fundamental a tutela executiva, a aplicação das regras sobre impenhorabilidade deve ser realizada com cautela. Há que se invocar aqui o auxílio do princípio da proporcionalidade com a técnica da ponderação de interesses, ou seja, nos casos de invocação de alguma hipótese de impenhorabilidade, faz-se necessário analisar in concreto as regras de modo a construir a solução mais oportuna.[3] 

Seguindo esta lógica, verifica-se uma sensível alteração na redação do dispositivo que veicula as hipóteses de impenhorabilidades: enquanto o artigo 649 do Código de Processo Civil de 1973 aludia a bens “absolutamente impenhoráveis”, o Código de Processo Civil atual refere-se simplesmente a bens impenhoráveis (artigo 833).

Conforme já pontuado por um dos autores deste texto: “a supressão do vocábulo ‘absolutamente’ pode decorrer de um mandamento do legislador no sentido de considerar as circunstâncias dos casos concretos. O aplicador do direito analisará in concreto a possibilidade de flexibilização dos casos de impenhorabilidade, respeitando os princípios da razoabilidade e proporcionalidade”.[4] 

Deve-se pontuar também que a lei considera impenhoráveis os bens inalienáveis (CPC, artigo 833, I), mas que nem todos os bens impenhoráveis são inalienáveis. Tal fenômeno ocorre em relação ao bem de família legal (Lei 8.009/1990): é tido por impenhorável, mas poderá ser livremente alienado pelo proprietário.[5] 

Assim, não há razão para se impedir a penhora do bem de família pela própria vontade do executado, especialmente levando em consideração a diretriz ética da boa-fé nas relações privadas, como já decidiu o STJ: “não pode o devedor ofertar bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão (vedação ao comportamento contraditório)”.[6] 

Some-se a isto o fato de que a jurisprudência de algumas Cortes Estaduais já vem admitindo a hipótese da penhora do bem de família de valor vultoso em caráter excepcional, destacando-se decisão do TJSP permitindo a penhora de imóvel residencial do executado avaliado no valor de R$ 24 milhões, com a reserva de parte do valor para o devedor.[7] 

Parece-nos que tal decisão se encontra alinhada com uma diretriz de proporcionalidade que já está presente no ordenamento jurídico:

  1. o § 2º do artigo 833 do Código de Processo Civil prescreve que a impenhorabilidade prevista em relação a valores depositados em cadernetas de poupança ou referentes a salários não se aplica a valores excedentes a 50 salários-mínimos mensais;
  2. são impenhoráveis os móveis e as utilidades domésticas encontradas na residência do executado, “salvo os de elevado valor” (CPC, artigo 833, II);
  3. a Constituição Federal define no artigo 5º, XXVI que a “pequena” propriedade rural não será penhorada por débitos ligados a sua atividade produtiva; e
  4. o § 3º artigo 54-A do Código de Defesa do Consumidor prescreve que a proteção especial ao consumidor superendividado não se aplica a  “contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor”.

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Assim, não é razoável concluir que o legislador tenha condicionado a impenhorabilidade nestas situações a bens de valores módicos, e permitiu a impenhorabilidade de imóveis residenciais de luxo. Isto posto, parece-nos que a penhora de imóvel residencial de alto valor está em perfeita sintonia com o nosso sistema jurídico.


[1] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006 p.3

[2] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Processo de Execução e Cumprimento da Sentença, Processo Cautelar e Tutela de Urgência – vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2014, 412.

[3] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil – Execução. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 550.

[4] COSTA FILHO, Venceslau Tavares; GUIMARÃES, Anne Gabriele Alves; FERREIRA, Juliana de Barros. Impactos do novo Código do Processo Civil sobre o regime jurídico das impenhorabilidades. Revista Brasileira Direito Processual, a. 25, n. 98 (abr/jun. 2017). Belo Horizonte: Fórum, p. 315-327.

[5] Neste sentido: “o bem de família legal, previsto na Lei nº 8.009/90, não gera inalienabilidade, possibilitando a sua disposição pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária, em que a propriedade resolúvel do imóvel é transferida ao credor do empréstimo como garantia do adimplemento da obrigação principal assumida pelo devedor” (EREsp 1.559.370/DF, Relator Ministro MOURA RIBEIRO, SEGUNDA SEÇÃO, DJe de 6/6/2023). 

[6] REsp n. 1.782.227/PR, relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado aos 27/8/2019, DJe de 29/8/2019.

[7] TJSP; Agravo de Instrumento 2075933-13.2021.8.26.0000

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