Será a morte da LGPD?

Nos últimos anos, a governança da tecnologia internacional consolidou-se como um dos principais campos de disputas, extrapolando os limites do mercado e adentrando, de modo inequívoco, a arena geopolítica.

Os Estados Unidos e a China emergiram como polos dominantes na hegemonia tecnológica, enquanto a União Europeia, carente de gigantes digitais equivalentes, optou por projetar seu poder através da regulação. O emblemático Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), tornou-se, assim, um sofisticado instrumento de soft power, exportando princípios e práticas que passaram a orientar legislações — ou, ao menos, inspirar legisladores e corporações ao redor do mundo.

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Essa configuração, contudo, mostra claros sinais de desgaste diante em um ambiente internacional cada vez mais marcado por volatilidade e antagonismos. Tensões militares, o retorno de Donald Trump à presidência dos EUA,  guerras por procuração e a corrida armamentista digital intensificaram o conhecido embate comercial e tarifário entre Washington e Pequim. Nesse cenário, o protagonismo  regulatório europeu, antes visto como estável, pode estar próximo ao fim.

A União Europeia encontra-se compelida a revisar seu próprio marco regulatório. Recentemente a Comissão Europeia anunciou a intenção de revisar o GDPR, buscando torná-lo menos oneroso, principalmente para pequenas e médias empresas, reduzindo os chamados compliance costs — custo de conformidade, em tradução livre — e  fortalecendo a competitividade europeia frente a potências menos limitadas por regulações burocráticas.

Paralelamente, os EUA intensificam práticas de self-regulation — autorregulação pragmática —, sustentadas por uma retórica ética, cujo objetivo central é preservar sua liderança global, minimizando restrições internas. A China, por sua vez, consolida a sua política de innovation with control — um modelo de forte incentivo à inovação tecnológica combinado a um rigoroso controle estatal.

Os conflitos relacionados aos semicondutores e ao desenvolvimento de inteligência artificial ilustram claramente essa dinâmica. Os EUA e China têm investido fortemente na nacionalização de suas cadeias produtivas, visando reduzir dependências mútuas e reforçar suas autonomias tecnológicas. A Europa, tradicionalmente arquiteta de regulações sofisticadas, enfrenta agora um dilema: precisa lidar com rupturas nas cadeias de suprimentos, a crescente dependência de semicondutores importados e o receio da perda do protagonismo regulatório.

É nesse novo tabuleiro global que se insere o Brasil — enfrentando um desafio comum a muitos países da chamada maioria global[1]. O reposicionamento das grandes potências em torno da regulação tecnológica não é um fenômeno lateral: é um tema central.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), concebida sob forte influência do GDPR, em um momento no qual a União Europeia exercia liderança normativa incontestável, agora se vê é pressionada pelas novas dinâmicas da disputa tecnológica global.

O Brasil, portanto, é atravessado por vetores contraditórios. Por um lado, enfrenta pressão para manter elevados padrões de proteção de dados pessoais, condição estratégica para inserção em fóruns multilaterais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Por outro, se vê diante da necessidade pragmática de flexibilizar regulações para atrair investimentos em inteligência artificial, cloud computing e infraestrutura digital — setores cada vez mais dominados por players estadunidenses e chineses.

O risco mais concreto não é a revogação formal da LGPD, mas seu esvaziamento progressivo — a lenta conversão de um marco regulatório robusto em um relicário normativo desconectado das dinâmicas reais de um ecossistema global fragmentado e assimétrico.

O desafio brasileiro, porém, ilustra um movimento mais amplo, no qual proteger dados pessoais tornou-se apenas uma  parte de um jogo maior: a disputa por poder tecnológico global. Inteligência artificial, semicondutores, telecomunicações 5G e computação quântica são simultaneamente recursos econômicos e instrumento de influência geopolítica.

O ponto de inflexão talvez esteja justamente nessa disputa por poder tecnológico, revelando os limites do soft power normativo. A regulação, antes ferramenta eficaz de influência global, agora é tensionada por interesses imediatos e por um ambiente cada vez mais intolerante às amarras burocráticas.

Nesse contexto, as corporações deixam de ser meras espectadoras e tornam-se peças-chave — ora como braços estratégicos de seus governos, ora como vetores de disputa normativa, ora como atores autônomos na competição global por padrões, regras e infraestruturas. O embate não é apenas comercial, mas existencial para o desenho dos futuros possíveis.

Durante anos, a governança digital teve Bruxelas como seu centro gravitacional, mas os ventos da história mudaram de direção. Hoje, as principais decisões orbitam entre Washington e Pequim. Ao Brasil, como a tantos outros países da maioria global, cabe o delicado equilíbrio de proteger sua soberania regulatória sem se afastar dos fluxos vitais da economia digital.

O direito, sozinho, já não basta. Juristas, formuladores de políticas públicas e estudiosos precisam compreender que os códigos que regerão a tecnologia global não se escrevem apenas em normas jurídicas, mas em estratégias de poder. Afinal, as disputas atuais raramente se encerram nos tribunais: elas são decididas no território instável e volátil da geopolítica — um mundo menos normativo, mais estratégico e radicalmente incerto.


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[1] Países da Ásia, África, América Latina, Caribe e Oceania — ou seja, a maior parte da população mundial e dos países em desenvolvimento — que não fazem parte do chamado “Ocidente Global” (Estados Unidos, Canadá, Europa Ocidental, Austrália, Japão, etc).

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