IA na AI: de Baumol a Baumann

Navegando pelos mares da rede mundial de computadores, encontramos excelente vídeo de Atila Iamarino com o título “Inteligência Artificial vai destruir o futuro da educação” [1], e que traz, de forma inventiva, as ideias do economista estadunidense William Jack Baumol (1922-2017), em especial a teoria chamada “doença dos custos” e como ela se aplica à discussão sobre inteligência artificial.

A doença dos custos é a ideia de que determinados setores, que dependam do fator humano personalizado, de experiência, se veem um tanto impermeáveis à automação, às inovações que reduzem os custos dos demais setores, e em um contexto de avanços científicos, tendem a se tornar mais valorizados, em especial por serem mais exclusivos e necessitarem reter profissionais com competências específicas.

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Essa discussão nos interessa, pois a onda de inserção de IA nas diversas atividades humanas, e em especial a auditoria interna (AI), tende a trazer junto a questão de em que medida essas inovações desempregarão esses profissionais, ou reduzirão as suas remunerações, em uma exaltação recente dos aspectos destrutivos e assustadores dessa novidade, que não é tão nova assim.

O debate necessário na verdade é outro. Dado que atividades serão rotinizadas na prática da auditoria interna com o crescimento da inteligência artificial, quais serão as competências valorizadas desses profissionais pelo seu aspecto personalizado e eminentemente humano, e essa questão deriva da visão da atividade de auditoria interna e suas possibilidades e limitações.

Elon Musk, a frente do DOGE, tem feito apostas de simplificação do controle governamental em iniciativas como o blockchain [2], em uma visão ampla e um tanto simplista. Esse movimento, que reflete tendências globais, encontra ecos no Brasil, onde sistemas como o ALICE, da Controladoria-Geral da União, já apontam para um futuro de uma auditoria mais automatizada, com cobertura ampliada, concomitante e com maior tempestividade. Mas, ao mesmo tempo, colocam o profissional da área diante de um cenário desafiador, marcado por incertezas e transformações profundas.

Nesse contexto, servindo-se das ideias do sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017), é possível se iluminar esse caminho. Seu conceito de modernidade líquida descreve um mundo em que as estruturas são instáveis, fugazes e maleáveis. Aplicado à auditoria interna, isso significa que o auditor não pode mais ser apenas um executor de procedimentos mecanizados: precisa ser um intérprete da incerteza, um mediador entre dados e decisões, um construtor de confiança institucional.

Essa transição já está em curso. O Future of Jobs Report 2025, do Fórum Econômico Mundial [3], prevê que a profissão de auditor está entre as mais ameaçadas pela automação. Isso não significa, porém, um desaparecimento inevitável — mas sim um alerta: se continuar sendo o que sempre foi, a auditoria interna perderá relevância. Para florescer, precisará evoluir, se reinventar. E essa evolução começa pelo redesenho de competências.

O uso da IA não apenas aprimorará as rotinas da auditoria interna, mas também abrirá a oportunidade de expandir o escopo das auditorias, incluindo a avaliação dos processos corporativos baseados em inteligência artificial. Isso agregará valor à instituição por meio de avaliações contínuas e abrangentes, que envolvem tanto a verificação de conformidade regulatória quanto a análise de desempenho e impactos operacionais. Para as organizações que adotam a inteligência artificial, é fundamental ter um processo de auditoria robusto, garantindo o uso eficaz, ético, seguro e responsável desses sistemas, além de otimizar a eficiência operacional e mitigar riscos.

Apesar de ser um assunto fronteiriço, para além das competências habituais e previstas nas normas internacionais do profissional de auditoria interna, pode-se arriscar nas limitações desse artigo que diversas fontes convergem em apontar três eixos centrais para essa transformação:

1) Domínio tecnológico e analítico

Auditores precisarão dominar ferramentas de análise de dados, inteligência de negócios e automação inteligente, como a automação robótica de processos (RPA). Também será necessário compreender fundamentos de inteligência artificial, aprendizado de máquina, estatística aplicada, engenharia de software e interfaces inteligentes. Embora não se espere que todos os auditores se especializem nesses temas, tais competências precisam estar presentes de forma distribuída nas equipes [3] [4] [5].

Uma análise de dados que para além do domínio de ferramentas, dialogue com os contextos, permitindo sínteses, aferição de tendências e o uso de mecanismos de comunicação dos resultados, como o storytelling, que permitam que a complexidade analisada que a IA permite seja convertida em informação que subsidie os processos decisórios em um nível estratégico.

2) Alfabetização em IA e governança digital

Entender os impactos dos algoritmos sobre os controles internos e decisões organizacionais será tão importante quanto conhecer as normas contábeis. Isso exige que todos os auditores desenvolvam uma alfabetização digital básica e que algumas equipes dominem aspectos mais avançados, como auditoria de algoritmos, análise preditiva e monitoramento contínuo de dados [4] [5].

Uma alfabetização digital que entenda que o mundo do negócio pode ainda estar deficitário da inclusão desse mundo e que seja emancipatória, no sentido de contribuir, com as suas proposições, para que a Tecnologia de Informação seja inserida como ferramenta no aprimoramento dos controles internos, e não como um fim em si mesmo.

3) Competências humanas, éticas e de assessoramento estratégico

Em um cenário marcado pela ambiguidade e pela transformação digital, as competências humanas tornam-se ainda mais centrais para a atuação do auditor. Habilidades como julgamento crítico, empatia, resiliência, inteligência emocional e comunicação clara são fundamentais para construir relações de confiança e navegar em ambientes organizacionais complexos.

Estudos recentes sobre a auditoria interna governamental realizada pela CGU [6] [7] reforçam essa perspectiva ao destacarem a importância do assessoramento técnico, da facilitação de processos e do relacionamento colaborativo com gestores públicos.

Essas competências interpessoais, que exigem escuta qualificada, capacidade de mediação e postura ética, não são passíveis de automação. Pelo contrário, são elas que permitem ao auditor atuar como agente de melhoria da gestão, ampliando seu impacto para além da conformidade normativa e fortalecendo os vínculos institucionais com os auditados [3] [5] [8].

Diante dessa pluralidade de demandas, é importante reforçar que não se trata de formar um “superauditor” ou um “auditor robô”. Como indicam Aldemir e Uysal [4], essas competências não precisam ser desenvolvidas por todos os profissionais de maneira uniforme ou profunda. O caminho mais eficaz é o da composição de equipes complementares, nas quais competências técnicas avançadas são distribuídas entre especialistas, enquanto todos os auditores desenvolvem uma base comum em alfabetização em IA, comunicação efetiva, raciocínio ético e aprendizado contínuo.

Se o futuro é líquido, como nos ensinou Bauman, o auditor que nele sobrevive é o que navega com bússola — não com mapa. Um profissional capaz de fazer as perguntas certas, mesmo quando os dados parecem responder tudo, e que consiga transformar essas respostas em conclusões contextualizadas que dialoguem com a realidade do gestor, reconhecidas por serem úteis e relevantes.

[1] Iamarino e Atila, “Youtube,” 31 Mai 2024. [Online]. Available: https://www.youtube.com/watch?v=C9S7Ycx546c&t=8s. [Acesso em 07 Abr 2025].
[2] InfoMoney, “Elon Musk planeja usar blockchain para melhorar eficiência de governo dos EUA,” Infomoney, 25 Jan 2025. [Online]. Available: https://www.infomoney.com.br/mundo/elon-musk-planeja-usar-blockchain-para-melhorar-eficiencia-de-governo-dos-eua/. [Acesso em 07 Abr 2025].
[3] World Economic Forum, “The Future of Jobs Report 2025,” 2025. [Online]. Available: https://reports.weforum.org/docs/WEF_Future_of_Jobs_Report_2025.pdf. [Acesso em 05 04 2025].
[4] C. Aldemir e T. Uysal, “AI COMPETENCIES FOR INTERNAL AUDITORS IN THE PUBLIC SECTOR,” EDPACS, 2024.
[5] L. M. e. J. C. G. d. R. D. Leocádio, “Auditors in the Digital Age: A Systematic Literature Review,” Digital Transformation and Society, vol. 4, p. 5–20, 2025.
[6] M. R. Loureiro, “CGU: uma instituição em busca do equilíbrio entre controle interno e combate à corrupção,” em Cátedras: Integridade em Debate, Brasília, Escola Nacional de Admnistração Pública, 2025, pp. 7-33.
[7] E. J. Grin, “A dissonância entre o que pensam os controladores e os gestores sobre a atuação da CGU,” em Catedras: Integridade em debate, Brasília, Escola Nacional de Administração Pública, 2025, pp. 33-64.
[8] M. R. Rumasukun, “Developing Auditor Competencies through Continuous Training and Education,” Golden Ratio of Auditing Research, vol. 4, p. 14–23, 2024.
[9] KPMG, “Transforming Internal Audit and Internal Control Through Digital Innovation,” 2022. [Online]. Available: https://assets.kpmg.com/content/dam/kpmg/ng/pdf/transforming-ia-and-ic-through-digital-innovation-new-latest.pdf. [Acesso em 06 Abr 2025].

 

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