Criptocrimes: uma análise criminológica dos novos golpes financeiros digitais

Os criptoativos possibilitaram novas formas de fraudes, muitas adaptadas tecnologicamente de esquemas antigos. O ambiente cripto, amplamente desregulado, favorece práticas ilícitas pela ausência de supervisão efetiva (Mackenzie, 2022; Reddy & Minnaar, 2018). Anonimato e descentralização tornam as criptomoedas instrumento e alvo ideal para criminosos virtuais. Destacam-se esquemas Ponzi, como OneCoin e Bitconnect, onde novos investidores pagam antigos até o inevitável colapso. No Brasil, são tipificados como crime contra a economia popular (Lei 1.521/1951) ou estelionato (art. 171-A, CP).

Outra fraude comum é o pump-and-dump, no qual o preço do ativo é inflado artificialmente antes da venda, causando prejuízos aos investidores subsequentes. Trozze et al. (2022) destacam sua frequência devido à volatilidade e assimetria informacional do mercado cripto. No universo das finanças descentralizadas (DeFi), o rug pull ganhou relevância, com desenvolvedores desaparecendo após arrecadar fundos, removendo liquidez de exchanges (Mackenzie, 2022). Rug pulls podem ser rápidos (remoção imediata da liquidez) ou lentos (vendas graduais com tranquilização das vítimas), com milhares ocorrendo regularmente (Mackenzie, 2022).

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Caso emblemático foi o Cryptogate, em 2025, envolvendo o presidente argentino Javier Milei, que promoveu a criptomoeda $LIBRA nas redes sociais, atraindo milhares de investidores antes de uma brusca desvalorização. Investigações criminais e pedidos de impeachment ocorreram, ilustrando a complexidade política e midiática dessas fraudes digitais (The Wall Street Journal, 2025). Esse episódio reforça a importância da criminologia na análise de golpes complexos que desafiam formas tradicionais de regulação e controle penal.

Além dos golpes financeiros, crescem esquemas baseados em engenharia social, explorando o desejo de lucro fácil. Exemplos incluem giveaway scams e pig butchering, nos quais criminosos usam manipulação emocional e perfis falsos para induzir investimentos em plataformas fraudulentas. Garg e Panchal (2022) descrevem mecanismos como exploração do FOMO, manipulação afetiva e exigências de “provas” falsas de legitimidade, ressaltando que, apesar das inovações tecnológicas, esses crimes seguem padrões antigos baseados em vulnerabilidade e ganância.

Discute-se se crimes envolvendo criptoativos representam ameaças genuinamente novas ou versões digitais de esquemas antigos. O’Neill (2000) e Grabosky (2001) argumentam pela continuidade histórica dessas fraudes (“vinho velho em garrafas novas”), como o rug pull refletindo o exit scam e esquemas Ponzi digitais. Essa perspectiva é sustentada pela criminologia do cotidiano, segundo a qual a tecnologia blockchain seria apenas uma nova ferramenta para práticas criminosas já conhecidas (Mackenzie, 2022).

Contudo, autores como Brown (2006) e Powell et al. (2018) consideram as criptomoedas uma nova fronteira criminológica devido ao caráter descentralizado, global e tecnossocial. Mackenzie (2022), em estudo etnográfico, descreve uma cultura de risco extremo (degen), com investidores aceitando golpes como inerentes ao ambiente digital. Esse fenômeno sugere a necessidade de revisão teórica da criminologia frente à crescente fusão entre vida real e virtual, diluindo a distinção clara entre vítimas e ofensores.

O ambiente permissivo das criptomoedas facilita crimes como fraudes, extorsões e phishing, impulsionado pelo anonimato e ausência de intermediários. Reddy e Minnaar (2018) destacam esse caráter não regulado como atrativo para crimes financeiros. Mackenzie (2022) caracteriza esse cenário como “economia cinzenta”. No Brasil, Oliveira da Paz e Pagliuso (2023) apontam a ausência regulatória como catalisadora da criminalidade financeira, prejudicando a economia global. Na perspectiva da teoria das atividades rotineiras, esse cenário reúne alvos vulneráveis, ofensores motivados e ausência de controle institucional eficaz.

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Essa ausência institucional é evidente nos relatos das vítimas, que frequentemente não encontram suporte após fraudes. Golpes bilionários como OneCoin e o colapso da corretora FTX revelam deficiências regulatórias sérias. Childs (2024) mostra como vítimas naturalizam prejuízos como “preço da descentralização”, internalizando ideologias libertárias que inibem denúncias e dificultam esforços de regulação mais rigorosa.

Tal naturalização facilita estratégias como rug pulls lentos, nos quais criminosos mantêm contato com vítimas enquanto retiram fundos, atrasando a percepção da fraude. Isso reduz reações imediatas, dando tempo para golpistas escaparem. Mesmo após descoberta, vergonha e fatalismo impedem mobilização efetiva das vítimas, reforçando a necessidade criminológica de entender as particularidades culturais e simbólicas das fraudes digitais.

Dados da Chainalysis revelam que, em 2021, golpes com criptoativos movimentaram US$7,7 bilhões globalmente, sendo 37% rug pulls. Relatórios da Europol (2022; 2025) e Interpol (2020; 2024) detalham envolvimento de grupos criminosos organizados, destacando operações como pig butchering no Sudeste Asiático e escândalos como OneCoin. Essas fontes empíricas complementam pesquisas acadêmicas, contextualizando a dimensão global das fraudes cripto.

A criminologia financeira explora a convergência entre criptoativos, colarinho branco e crime cibernético. Pesquisas buscam tipificar, prevenir e compreender esses delitos, combinando teorias clássicas com novos conceitos frente à cultura digital e ausência regulatória. Essa dinâmica envolve técnicos, golpistas carismáticos e vítimas inseridas numa subcultura especulativa e arriscada, exigindo abordagens criminológicas inovadoras.

Os crimes com criptomoedas representam adaptações digitais de esquemas clássicos num ecossistema desregulado. A criminologia oferece ferramentas para compreender e combater essas fraudes, enfatizando a necessidade de medidas normativas, como o art. 171-A do Código Penal brasileiro, aliadas a ações educativas contra romantizações libertárias da ausência regulatória. Investigações criminológicas são essenciais para estratégias efetivas de prevenção, repressão e compreensão da vitimização nesse complexo cenário digital.

Referências

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