A lógica invertida do orçamento brasileiro: quanto mais importante, menos respeitado

Os acontecimentos dos últimos dias deixaram nítida a contradição que marca o tratamento dado ao orçamento público e ao sistema de planejamento orçamentário: quanto mais essenciais se mostram à gestão do Estado, mais negligenciados têm sido, evidenciando uma lógica perversa e uma inversão preocupante de prioridades.

Não se pode cansar de repetir a brilhante frase do ministro Ayres Brito, nos debates ocorridos por ocasião do julgamento da ADI 4048, ao dizer que a lei orçamentária é a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico depois da Constituição, por ser a que mais influencia o destino da coletividade[1].

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A Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2025 — a mais importante da Federação —, que deveria ter sido aprovada até dezembro de 2024, só foi publicada recentemente (Lei 15.121, de 10 de abril de 2025). Com isso, a administração pública federal passou mais de três meses, ou um quarto do ano, operando sob execução orçamentária parcial e provisória.

Trata-se de um prejuízo imensurável à gestão pública, com efeitos diretos em forma de atrasos, desperdício de recursos e insegurança jurídica — esta última, também sentida pelo setor privado e pelos demais entes federativos, fortemente dependentes da atuação do governo federal.

Na análise da LOA 2025, algumas informações mostram-se preocupantes.

É o caso das sempre presentes, e excessivas, despesas com a dívida pública (previsão de R$ 1,7 trilhão para o refinanciamento) e gastos com a previdência social (mais de R$ 1 trilhão, que cresce ano a ano)[2], que representam as maiores “fatias” do “bolo” orçamentário, e acabam por comprimir os investimentos públicos, que são os grandes responsáveis pelo fomento ao desenvolvimento do país e crescimento da economia.

Falta transparência em alguns pontos, como a forma de financiamento dos programas Pé-de-Meia e Minha Casa Minha Vida[3], evidenciando desvios em relação ao regime jurídico próprio dos orçamentos públicos[4]. Há ainda suspeita de superestimativa de receitas[5], prejudicando a confiabilidade dos números apresentados e comprometendo a credibilidade da lei.

Mas há outras razões para se preocupar ainda mais com a desconsideração ao ordenamento jurídico em matéria de planejamento orçamentário.

Na última terça-feira (15) foi divulgada a proposta de lei de diretrizes orçamentárias federal para o exercício financeiro de 2026, como determina a Constituição. A LDO tem hoje um papel de enorme relevância no âmbito não só do planejamento orçamentário da administração pública, mas também na própria gestão financeira e execução das despesas públicas, com reflexos importantes no setor privado, especialmente no terceiro setor[6].

Antes de ressaltar os aspectos relevantes da LDO federal, é preciso chamar a atenção para o fato de que a proposta, que deve ser obrigatoriamente apresentada até o dia 15 de abril de cada ano, tem data para ser aprovada: 17 de julho[7]. No entanto, o que se vê é um flagrante e frequente descumprimento dessa norma constitucional.

A última LDO, atualmente vigente, foi publicada em 30 de dezembro de 2024 (Lei 15.080) – “apenas” seis meses de atraso! A LDO 2024 em nada diferiu: foi publicada em 23 de dezembro de 2023 (Lei 14.791), com os mesmos e inaceitáveis seis meses de atraso.

Em linhas gerais, a LDO tem a função constitucional de estabelecer as metas e prioridades da administração pública federal, as diretrizes de política fiscal e respectivas metas, em consonância com a trajetória sustentável da dívida pública, e orientar a elaboração da lei orçamentária anual (Constituição, art. 165, § 2º). Por essa razão, deve ser publicada até o final do primeiro semestre de cada ano, antes da apresentação do projeto de lei orçamentária, que deve ocorrer até o final do mês de agosto.

Ora, como uma lei, cuja função principal é orientar a elaboração da lei orçamentária, pode ser publicada após a propositura da lei orçamentária? E pior: nos dois últimos anos, foi aprovada próxima da data em que deveria estar aprovada a própria lei orçamentária, em sua versão final e definitiva!  Evidentemente que sua principal e relevante função como instrumento de planejamento orçamentário ficou altamente prejudicada.

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) — Lei Complementar 101, de 5 de maio de 2000, que completará 25 anos em breve —, juntamente com alterações constitucionais, ampliou significativamente as atribuições das leis de diretrizes orçamentárias.

Desde então, essas leis passaram a exercer funções centrais no planejamento e na gestão das finanças públicas, como: assegurar o equilíbrio entre receitas e despesas; estabelecer critérios para limitação de empenho; definir normas de controle de custos e avaliação de resultados de programas; e regulamentar as transferências de recursos para o setor privado, entre outras (LRF, art. 4º, I).

Uma das funções que mais tem chamado a atenção e balizado a gestão das finanças públicas é o estabelecimento das metas de resultado nominal e primário do montante da dívida pública. Uma definição fundamental, por ser o momento oportuno de definir se e quanto o país pretende alocar para diminuir (ou não) o cada vez mais expressivo montante da dívida pública, essencial para manter o equilíbrio orçamentário anual e a sustentabilidade das finanças públicas ao longo do tempo.

Até dez anos atrás, as metas sempre foram positivas. Com o agravamento da crise em meados da década de 2010, as LDO começaram a admitir formalmente metas com resultado negativo, mostrando que o país “jogava a toalha” e não conseguia mais manter o equilíbrio das contas públicas, o que só voltou a ocorrer em 2022.

Buscando retomar a estabilidade fiscal, a LDO de 2024 estabeleceu a chamada “meta zero” (Lei nº 14.791/2023, art. 2º), que foi formalmente cumprida. Contudo, esse cumprimento considerou algumas ressalvas, como a exclusão, do cálculo, de determinadas despesas — entre elas, aquelas relacionadas às calamidades no Rio Grande do Sul —, além da aplicação da margem de tolerância prevista na própria norma.

A LDO recém-proposta prevê uma meta de superávit primário de 0,25% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2026, projetando-se um crescimento maior para os dois próximos exercícios, mas reconhece que a dívida bruta do governo seguirá em alta até 2028.

A importância da LDO vê-se também por outras informações importantes que nela são formalizadas, como a previsão de crescimento do PIB (2,5% para o próximo ano, como anunciado), a projeção de inflação (IPCA de 3,5%), estimativa da taxa de juros Selic de 14% ao ano em 2025 e 12,45% em 2026[8], e aumento de 7,4% no salário-mínimo, passando o piso salarial para R$ 1.630[9].

O que se pode constatar é a enorme relevância dos instrumentos de planejamento orçamentário para a gestão das finanças e o desenvolvimento do país.[10]

A realidade, contudo, revela que toda essa importância não tem sido devidamente reconhecida. Os instrumentos de planejamento orçamentário têm perdido credibilidade, por não receberem o tratamento que lhes é devido. De pouco serve divulgar projeções e estimativas — como as atualmente conhecidas — se, como nos dois anos anteriores, o projeto for aprovado fora do prazo constitucional, comprometendo boa parte de suas funções e sua efetividade.

Também não se vê dar-se a devida importância a instrumentos fundamentais para o imprescindível planejamento do setor público, como o PPA (Plano Plurianual). Para registro, lembremos que no segundo semestre deste ano, todos os prefeitos eleitos devem apresentar o projeto de PPA dos respectivos municípios, aprovando-os até o final do ano. E pouco se ouve falar no assunto, evidenciando a pouca atenção a este que é o instrumento por excelência definidor das prioridades da administração pública.

Mais uma vez, observamos a inexplicável falta de seriedade com que são tratadas as normas de planejamento orçamentário, fundamentais para o desenvolvimento do país, exigindo um esforço contínuo de luta para que lhes sejam reconhecidos e atribuídos o valor e a importância devidos.


[1] “Abaixo da Constituição, não há lei mais importante para o país, porque a que mais influencia o destino da coletividade”; é a “lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da Constituição” (Min. Carlos Ayres Britto, STF, Tribunal Pleno, ADI 4.048-MC/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14.5.2008).

[2] Entenda os principais números do Orçamento 2025. In Poder 360, em 21.3.2025 (https://www.poder360.com.br/poder-economia/entenda-os-principais-numeros-do-orcamento-2025/).

[3] Oposição vê “drible” no Orçamento para Pé-de-Meia e Minha Casa, Minha Vida. In Veja, 21.3.2025 (https://veja.abril.com.br/coluna/radar/oposicao-ve-drible-no-orcamento-para-pe-de-meia-e-minha-casa-minha-vida/).

[4] A coluna publicada em 6.2.2025 (Orçamento, impeachment e Pé-de-Meia: 2025inicia desafiador para o Direito Financeiro) abordou a questão referente ao Pé-de-Meia (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/orcamento-impeachment-e-pe-de-meia-2025-inicia-desafiador-para-o-direito-financeiro).

[5] Governo superestima receitas para 2025 em R$ 87,4 bi, diz IFI. In Poder 360, 26.3.2025 (https://www.poder360.com.br/poder-economia/governo-superestima-receitas-para-2025-em-r-874-bi-diz-ifi/).

[6] Sobre o tema, escrevi, entre outros, os textos LDO é instrumento eficiente para a administração pública e Decisões financeiras fundamentais são tomadas na Lei de Diretrizes Orçamentárias, disponíveis no livro de acesso gratuito Levando o Direito Financeiro a Sério – a luta continua (Blucher, 2019), que pode ser baixado em https://www.blucher.com.br/levando-o-direito-financeiro-a-serio_9788580394023

[7] Constituição, art. 57, caput e § 2º, c.c. ADCT, art. 35, § 2º, II

[8] LDO prevê que PIB crescerá 2,5% e inflação será de 3,5% em 2026. In Metrópolis, 15.4.2025 (https://www.metropoles.com/brasil/economia-br/ldo-preve-que-pib-crescera-25-e-inflacao-sera-de-35-em-2026).

[9] Governo envia LDO 2026 ao Congresso com aumento no salário-mínimo. In Metropolis, 15.4.2026 (https://www.metropoles.com/brasil/economia-br/governo-lula-envia-ldo-ao-congresso-com-aumento-no-salario-minimo).

[10] O tema é abordado em meu livro, de acesso gratuito, CONTI, José Mauricio. Planejamento orçamentário da administração pública no Brasil. São Paulo: Blucher, 2020. Versão eletrônica gratuita em: https://www.blucher.com.br/o-planejamento-orcamentario-da-administracao-publica-no-brasil_9786555500219

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