A Solução de Consulta COSIT nº 55, de 26 de março de 2025, trouxe uma nova controvérsia sobre a incidência de contribuições previdenciárias sobre valores pagos pelo empregador a título de ganho eventual. Em geral, esses valores estão excluídos da base de cálculo da contribuição previdenciária, precisamente porque referidas contribuições só incidem sobre verbas pagas de forma habitual, nos termos do artigo 201 da CF/88.
No entanto, ao analisar a natureza de um pagamento único e sua classificação como “ganho eventual”, a Receita Federal surpreendeu ao concluir que o valor “não constitui ganho eventual (…) pois não há, em relação a tal pagamento, expressa desvinculação do salário por força de lei.”.
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Essa conclusão representa uma interpretação mais restritiva do que a adotada anteriormente pela própria Receita Federal, como na Solução de Consulta COSIT nº 126/2014, que definia com clareza os requisitos para enquadramento de um valor como ganho eventual: “aquele que independe da vontade do trabalhador e de seu desempenho, sendo concedido por liberalidade do empregador sem que haja qualquer expectativa por parte do empregado“.
Na verdade, o entendimento veiculado na Solução de Consulta 55/2025 não é apenas uma nova interpretação da lei, mas um reflexo da crescente limitação imposta pela Receita Federal para que qualquer pagamento possa ser excluído da base de cálculo das referidas contribuições.
Para quem já tem familiaridade com o tema, a situação trazida pelo consulente parece preencher todos os requisitos para exclusão do valor da base de cálculo das contribuições previdenciárias: “pagamento único em razão do sucesso da transação, com o ingresso de novos acionistas e aporte de recursos na pessoa jurídica.“
No entanto, a Receita Federal se baseia na redação atual do artigo 214, §9º, alínea “j”, do Decreto nº 3.048/1999, segundo o qual não integram o salário de contribuição os “ganhos eventuais expressamente desvinculados do salário por força de lei“. Com base nessa disposição, sustenta-se que a tributação não ocorreria somente se houvesse previsão legal específica, que declarasse expressamente a desvinculação do pagamento em relação ao salário.
Nesse sentido, a Receita chega a afirmar que “não se vislumbra dispositivo legal desvinculando expressamente do salário um pagamento (eventual) feito a determinado grupo de empregados e diretores em razão do ingresso de novos acionistas e novos aportes na empresa“.
Tal raciocínio, contudo, parece extrapolar os limites interpretativos compatíveis com o ordenamento jurídico. Ao exigir uma legislação individualizada para cada pagamento, desconsidera-se a lógica do conceito de “ganho eventual”, que, por definição, consiste em valor extraordinário, incerto e não habitual, cuja previsibilidade normativa seria impraticável.
Naturalmente, é impossível que o legislador seja capaz de prever os eventuais pagamentos realizados pelas empresas aos seus empregados. A eventualidade indica justamente que o pagamento não é previsível e não decorre de qualquer “acontecimento” conhecido, mas sim da mera vontade do empregador.
Além disso, é de se observar que a redação atual do artigo 214, §9º, alínea “j”, do Decreto nº 3.048/1999[1], atribuída pelo Decreto nº 10.410/2020, destoa da previsão existente na Lei nº 8.212/91, item 7 da alínea “e” do §9º, artigo 28[2], que indica a não incidência de contribuição previdenciária sobre “recebidas a título de ganhos eventuais e os abonos expressamente desvinculados do salário”, sem indicar a necessidade de previsão específica em lei.
Há uma diferença muito grande na redação dos dois dispositivos, como se pode observar. A leitura atenta do dispositivo legal evidencia que o complemento “expressamente desvinculados do salário” se refere exclusivamente aos abonos, não se aplicando aos ganhos eventuais. Trata-se de construção sintática clara, que delimita de forma distinta os dois institutos mencionados na norma: os ganhos eventuais, por sua natureza não habitual e incerta, e os abonos, cuja exclusão do campo contributivo demanda a expressa desvinculação do salário.
Caso o legislador tivesse pretendido condicionar ambas as rubricas — ganhos e abonos — à exigência de expressa desvinculação do salário, a redação legal teria adotado outra estrutura, como por exemplo: “recebidas a título de ganhos e abonos eventuais e expressamente desvinculados do salário”.
A redação original do Decreto nº 3.048/1999[3] coincidia com a redação atual da Lei nº 8.212/91, numa acepção lógica que permitia facilmente compreender que o legislador buscou abarcar esses pagamentos únicos e extraordinários, sem se incumbir do fardo de imaginar todos os possíveis ganhos eventuais do empregado.
No entanto, a Receita Federal vem utilizando a redação distorcida para afirmar que a habitualidade deixou de ser um critério relevante na definição do salário de contribuição, ao arrepio inclusive do artigo 201, §11, da Constituição Federal[4].
Esse esforço argumentativo ignora o conceito e a relevância da habitualidade para a determinação das verbas com natureza jurídica remuneratória já defendido pelo Supremo Tribunal Federal. A Corte já analisou e sedimentou a questão em sede de dois julgamentos de Repercussão Feral – Temas 985 e 20 – assentando que “a contribuição social a cargo do empregador incide sobre ganhos habituais do empregado, quer anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional nº 20/1998″.
A interpretação proposta pelo Fisco distorce o sentido originário da legislação, desconsiderando que a habitualidade é elemento essencial para a caracterização da base contributiva. Importa destacar que a discussão não se estende, por ora, aos contribuintes individuais, para os quais de fato a habitualidade não é requisito exigido pela legislação vigente.
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O entendimento manifestado pela Solução de Consulta COSIT nº 55/2025 possui repercussões significativas, sobretudo para as empresas que, eventualmente, se deparam com a necessidade de gratificar seus empregados em decorrência de evento imprevisível e extraordinário. A partir da interpretação restritiva veiculada pela Receita Federal, essas parcelas, ainda que concedidas de forma não habitual, passam a ser submetidas à incidência das contribuições previdenciárias, o que pode desestimular a adoção de incentivos que não estejam vinculados à contraprestação direta de serviços.
Tal orientação também intensifica o cenário de insegurança jurídica, ao ampliar o grau de incerteza quanto à validade e aos limites da interpretação administrativa em matéria tributária. Nesse contexto, o fortalecimento da coerência normativa e da uniformidade jurisprudencial torna-se indispensável para assegurar um ambiente de negócios juridicamente estável e compatível com os princípios fundamentais que regem o sistema tributário nacional.
[1] j) ganhos eventuais expressamente desvinculados do salário por força de lei;
[2] recebidas a título de ganhos eventuais e os abonos expressamente desvinculados do salário
[3] j) ganhos eventuais e abonos expressamente desvinculados do salário;
[4] 11. Os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e conseqüente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei.