A decisão monocrática proferida pelo ministro Gilmar Mendes, de suspender as ações trabalhistas sobre pejotização até que se examine caso de repercussão geral sobre o tema, não surpreende, vindo de quem vem.
Basta ler as declarações públicas acintosas do ministro sobre o tema (que sequer deveriam ser admitidas em uma corte constitucional de respeito) para se concluir que Gilmar – talvez em razão de suas atividades no setor educacional – age como um típico líder empresarial antiquado que não gosta de leis trabalhistas e detesta a Justiça do Trabalho.
Conheça o JOTA PRO Trabalhista, solução corporativa que antecipa as movimentações trabalhistas no Judiciário, Legislativo e Executivo
Sejamos francos: essa é basicamente a inspiração de seus votos em questões que envolvem a CLT e a jurisdição laboral. Porque do Bom Direito nada há que sustente a primazia de um contrato civil sobre a realidade do trabalho subordinado, o afastamento do art. 9º da CLT sem qualquer justificativa jurídica ou minimamente racional, nem tampouco a retirada da competência da Justiça do Trabalho para julgar “relações de trabalho”, contra disposição expressa do art. 114 da Constituição.
Como chegamos a esse absurdo kafkiano que são as decisões extravagantes do STF sobre pejotização? Vamos recordar. O Supremo julgou a constitucionalidade de dispositivos da reforma trabalhista, declarando constitucionais as normas que permitiam a terceirização da atividade-fim e fixavam a responsabilidade subsidiária da tomadora dos serviços. Até aí nenhum problema.
As coisas degringolaram quando o STF, a troco de nada, equiparou a terceirização ao fenômeno da pejotização, estabelecendo mais ou menos o seguinte raciocínio primário e errado: se pode terceirizar, pode pejotizar.
Obviamente que terceirizar e pejotizar são coisas completamente diferentes quanto à sua natureza e consequências. Assim, as reclamações sobre pejotização sequer poderiam ter sido admitidas por falta de aderência ao tema 725 de repercussão geral. Terceirizar pressupõe uma relação triangular entre empresa tomadora, empresa prestadora e trabalhador, hipóteses em que este tem os seus direitos trabalhistas assegurados.
Na pejotização há apenas duas partes, a empresa contratante e o trabalhador sob personalização jurídica, sem direitos trabalhistas. É claro que a pejotização nunca foi vedada ou reprimida aleatoriamente pela Justiça do Trabalho, o que ocorria apenas quando ela mascarava uma relação jurídica simulada (que é o conceito de fraude trabalhista do art. 9º), com sonegação de direitos sociais dos trabalhadores.
Pois agora o ministro Gilmar sinaliza que qualquer pejotização valerá acima da realidade do contrato e que mesmo quando é alegada uma fraude (a promessa de autonomia laboral não se concretiza no plano dos fatos), o trabalhador não poderá buscar a Justiça do Trabalho para questionar o vínculo, mas terá que levar o caso à Justiça Comum para provar o “vício de consentimento” do direito civil, arcando com o pagamento de custas prévias e todas as dificuldades de acesso que esse ramo do Judiciário apresenta à classe trabalhadora.
A pergunta sem resposta é: o que mudou na lei ou na Constituição para que se alterasse a competência da Justiça do Trabalho sem mais nem menos? Absolutamente nada! Há precedentes nas instâncias ordinárias de conflito de competência entre a Justiça do Trabalho e a Justiça Comum em torno da pejotização? Nenhum!
Aliás, observe-se que o tema da competência sequer foi ventilado em todo o curso do processo que deu origem ao RE 1.532.603, supostamente o leading case que servirá à formação do precedente de repercussão geral, o que denota manobra processual de legalidade altamente questionável.
Então, como o STF vai alterar uma competência que é praticada pela justiça laboral há 80 anos, afirmada e reafirmada pela Constituição, sem qualquer modificação processual promovida pelo legislador, controvérsia doutrinária ou mesmo precedentes que justifiquem dissenso jurisprudencial? Trata-se de canetaço ao estilo L’État c’est moi, decidido com a arrogância costumeira de quem a profere.
E, mais relevante ainda, qual a preocupação da corte com o impacto dessa medida no mercado de trabalho? Quantas empresas trocarão os seus empregados por pejotizados? Como se assegurarão os direitos das mulheres trabalhadoras de proteção à gravidez, de garantias contra assédio sexual e de isonomia salarial se elas são transformadas em “microempreendedoras individuais”, em “patroas de si mesmas”?
Qual o impacto nas contas da previdência decorrente da redução da base de cálculo e das alíquotas com o aval do STF para a pejotização ampla e irrestrita? Impressiona a absoluta irresponsabilidade e leviandade da corte em ignorar essas consequências deletérias, facilmente previsíveis por meio da mais simplória “análise econômica do direito”.
Será possível que os demais ministros não percebem a violência jurídica subjacente às propostas de Gilmar? Será que o presidente da corte, ministro Luís Roberto Barroso, permitirá que uma decisão assim autoritária, inconsistente e inconstitucional, que implica em destruição dos direitos sociais e de acesso dos trabalhadores ao Judiciário, manche a sua gestão supostamente garantidora de direitos fundamentais?
A História registrará esse momento deprimente na trajetória do STF, como registrou as vexatórias decisões pretéritas de cortes constitucionais que aqui e em outras terras da América violentaram os direitos dos negros, dos indígenas, das mulheres e dos trabalhadores.