Sanções por aquisições de produtos relacionados ao trabalho escravo

Por 10 votos a 1, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 5465, que se concluiu na semana passada, declarou a constitucionalidade da Lei 14.946/2013 do estado de São Paulo, que prevê uma série de sanções às empresas que comercializam produtos oriundos de trabalho escravo ou em condições análogas à escravidão[1]. Apesar de o acórdão ainda não ter sido publicado, é possível fazer algumas observações preliminares sobre tão importante julgado.

Trata-se de iniciativa legislativa importante e ousada, que prevê, dentre as sanções, a possibilidade de cancelamento da inscrição no cadastro do ICMS e a proibição de que a empresa e seus sócios atuem no mesmo ramo de atividade por até dez anos, inclusive por meio da abertura de nova empresa[2].

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Em outras palavras, as sanções são pesadas, na medida em que inviabilizam – ainda que temporariamente – o próprio exercício da atividade empresarial não apenas pela empresa, mas também pelos seus sócios.

De forma geral, o Supremo Tribunal Federal chancelou os principais aspectos da lei, fazendo apenas alguns ajustes – interpretações conformes à Constituição – para deixar claros os requisitos materiais e processuais necessários para a aplicação da sanção, bem como para assegurar a própria proporcionalidade da sanção, como se observa pela decisão[3]:

“O Tribunal, por maioria, conheceu da ação e julgou procedente em parte o pedido para assentar a constitucionalidade da Lei paulista n. 14.946, de 28 de janeiro de 2013, do Estado de São Paulo, conferindo interpretação conforme à Constituição aos seguintes dispositivos: (i) Artigos 1º e 2º da Lei paulista n. 14.946/2013, de modo a exigir a comprovação, em processo administrativo sob as garantias do contraditório e da ampla defesa, de que o sócio ou preposto do estabelecimento comercial sabia ou tinha como suspeitar da participação de trabalho escravo na cadeia de produção das mercadorias adquiridas; (ii) Artigo 4º da Lei paulista n. 14.946/2013, de modo a exigir a comprovação, em processo administrativo sob as garantias do contraditório e da ampla defesa, de que o sócio a ser punido, sabendo ou tendo como suspeitar da participação de trabalho escravo na cadeia de produção das mercadorias adquiridas, haja contribuído, comissiva ou omissivamente, com a aquisição de aludidas mercadorias; (iii) § 1º do Art. 4º da Lei paulista n. 14.946/2013, de maneira que o prazo de 10 (dez) anos seja adotado como limite máximo, restando a norma com a seguinte dicção: “§ 1º – As restrições previstas nos incisos prevalecerão pelo prazo de até 10 (dez) anos, contados da data de cassação”, tendo ficado explicitado que o reconhecimento da ocorrência de trabalho análogo à escravização é feita pelo órgão federal competente. Tudo nos termos do voto do Relator, vencido parcialmente o Ministro Dias Toffoli, que julgava procedente o pedido. Nesta assentada, o Ministro Luiz Fux reajustou seu voto para acompanhar integralmente o Relator. Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário, 9.4.2025″.

Dessa maneira, ficam claras as seguintes preocupações do STF: (i) necessidade de processo administrativo que assegure o contraditório e a ampla defesa, no qual se deve comprovar que a empresa tinha conhecimento ou ao menos indícios suficientes para suspeitar, da utilização de trabalho escravo na cadeia produtiva das mercadorias ou pelo menos poderia identificar a prática irregular na origem dos produtos; (ii) transformação do prazo de dez anos no prazo de até dez anos e (iii) o pressuposto de que o reconhecimento da existência de trabalho escravo deve ser feito pela autoridade federal competente.

Explicado o julgado, vale a pena ressaltar que se trata de importante decisão sobre tema cada vez mais relevante: a alocação da responsabilidade civil e administrativa de agentes econômicos integrados em cadeias contratuais cada vez mais complexas. A pergunta que permeia a reflexão é sobre se e em que medida é razoável que um se responsabilidade pelos ilícitos do outro.

No plano da responsabilidade civil, a resposta pode ser positiva, desde que comprovada a culpa in eligendo ou a culpa in vigilando do contratante. Afinal, quem contrata um parceiro comercial precisa agir de forma diligente, sendo criterioso na escolha do parceiro e no monitoramento da sua execução contratual.

Já na seara administrativa, como é o caso da lei paulista ora sob análise, a resposta também pode ser afirmativa, desde que se comprove a conduta reprovável por parte da empresa e desde que se observem os princípios constitucionais pertinentes, muitos dos quais mencionados no julgamento do STF, tais como contraditório, devido processo legal, proporcionalidade da pena, dentre outros.

No caso específico, a reprovabilidade da conduta, como descrito pelo próprio STF, ocorre quando o sancionado tem conhecimento do ilícito – no caso, da utilização de trabalho escravo – ou poderia ter, se tivesse agido de forma prudente. Daí por que o STF deixou claro que deve haver a prova de que o sócio ou preposto do estabelecimento comercial sabia ou tinha como suspeitar da participação de trabalho escravo na cadeia de produção das mercadorias adquiridas ou haja contribuído, comissa ou omissivamente, com a aquisição de aludidas mercadorias.

Assim, observa-se que, com a interpretação conforme atribuída pelo STF, a lei paulista não se mostra desarrazoada, uma vez que não impõe aos contratantes ônus absurdos, excessivos e inexequíveis, mas tão somente exige deles o zelo necessário em suas contratações, especialmente diante de um assunto tão sensível como deve ser a vedação do trabalho escravo.

O tema apresenta muitos pontos de contato com a reflexão sobre as responsabilidades decorrentes da terceirização, tal como já tive oportunidade de explorar em artigo anterior[4], no qual defendi que é possível terceirizar atividades, mas não responsabilidades.

Isso decorre do princípio do equilíbrio entre poder e responsabilidade, que tem claras raízes éticas e jurídicas, mas apresenta igualmente relevante justificativa econômica. Afinal, partindo da premissa de que agentes econômicos reagem a incentivos, a responsabilidade civil e administrativa é um importante estímulo para a ação adequada. De forma contrária, a irresponsabilidade é perigoso indutor não só da assunção excessiva de riscos e da geração descontrolada de externalidades negativas, como também de condutas descuidadas e negligentes.

Com efeito, quais são os reais incentivos que uma empresa terá para contratar apenas empresas que respeitem os direitos dos trabalhadores se não tiver nenhum grau de responsabilidade pelos danos e ilícitos praticados por esta última? Provavelmente poucos ou nenhum. A mesma lógica pode ser utilizada para outras áreas do direito.

A questão de fundo, portanto, é evitar o fenômeno da “irresponsabilidade organizada”, em que agentes econômicos se aproveitam de arranjos contratuais para terem vantagens sem as devidas responsabilidades.

Aliás, vale lembrar que hoje é ponto pacífico dos programas de compliance e integridade o de que não basta cumprir a lei e os princípios éticos, mas também é fundamental exigir isso dos parceiros contratuais. O ponto aqui é que tal obrigação não pode ser apenas voluntária, mas deve ser igualmente obrigatória, sob pena de sujeitar o agente econômico aos riscos da sua omissão culposa, incluindo aí sanções administrativas, tais como as previstas pela lei paulista.

A lei paulista, portanto, ainda mais depois das ressalvas adicionadas pelo STF por meio da interpretação conforme, mostra-se constitucional e representa um importante passo para a erradicação do trabalho escravo, tendo utilizado, de forma adequada, os mecanismos possíveis de responsabilização. Agora é torcer para que seja efetiva e bem aplicada.


[1] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI5465informac807a771oa768sociedadetrabalhoescravoSP.pdf

[2] https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI5465informac807a771oa768sociedadetrabalhoescravoSP.pdf

[3] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4919704

[4] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/voce-nao-pode-terceirizar-responsabilidades

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