Quando, em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou o Recurso Extraordinário 1017365, definiu que não há marco temporal e tampouco outro impedimento jurídico para a continuidade dos processos de demarcação.
No entanto, a Suprema Corte ainda deve uma explicação aos povos indígenas do Brasil. Em especial, em relação aos embargos de declaração, que ainda pendem de definição neste caso de repercussão geral, que recebeu a designação de Tema 1031, e aos variados pedidos de declaração de inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, a lei do marco temporal, vigente e sem apreciação pelo plenário da Corte.
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A decisão no Tema 1031 confirmou a constitucionalidade do Decreto 1.775/1996, que estabelece o rito de demarcação de terras indígenas, e reforçou dispositivos fundamentais, como o direito originário dos povos indígenas aos seus territórios e ao usufruto exclusivo dos bens naturais neles existentes e a capacidade civil e postulatória para defesa de seus direitos.
No julgamento, a Corte firmou que é possível a apuração da responsabilidade civil da administração pública pelos danos causados ao particular de boa-fé. Esse reconhecimento pode ensejar indenização aos impactados pela demarcação das terras indígenas, analisado caso a caso, além da indenização pelas benfeitorias.
Em nenhum momento, o Supremo aventou a indenização pela terra nua decorrente da demarcação das terras indígenas, vedada pelo artigo 231 da Constituição Federal.
Por outro lado, em uma interpretação sistemática da Constituição, a Corte considerou cabível a indenização por evento danoso ou ato ilícito nos casos em que se comprove que o Poder Público incorreu em ato ilegal ao conceder título de propriedade sobre terras de ocupação tradicional indígena. Mas indenização por evento danoso em nada se confunde com a indenização pela terra nua.
No julgamento do Tema 1031, o STF criou critérios objetivos para a posterior aferição sobre os casos em que essa indenização por evento danoso é aplicável, apartada do procedimento demarcatório. A Corte definiu que não terá direito à indenização aquele que não possui boa-fé na ocupação, como grileiros e invasores – o que se estende, por óbvio, a criminosos e contraventores que atentam contra pessoas, contra o patrimônio indígena e contra o meio ambiente.
São critérios objetivos e necessários que o STF construiu naquele julgamento e que carecem de melhor esclarecimento, o que ocorrerá quando forem julgados os embargos de declaração no Tema 1031 para o aperfeiçoamento da redação das teses fixadas.
Apesar desta decisão do STF em caso de repercussão geral, o Congresso Nacional avançou, em clara afronta à Constituição Federal e ao Supremo, com a promulgação da Lei 14.701, que de forma incompreensível ainda está em vigor. A lei em questão institui o marco temporal e impõe novas fases ao procedimento demarcatório, tornando-o ainda mais moroso.
A Corte, além do julgamento dos embargos de declaração no Tema 1031, também já deveria ter se pronunciado sobre a inconstitucionalidade da Lei do Marco Temporal. Contudo, o ministro Gilmar Mendes, relator de ao menos cinco ações de controle de constitucionalidade que discutem o tema, preferiu convocar as partes no intento de conciliar assuntos atinentes aos direitos indígenas.
A medida possui o objetivo de superar conflitos, mas acaba por contribuir com uma situação de maior insegurança jurídica. Primeiro, porque a lei que a motiva já nasceu com presunção de inconstitucionalidade; depois, porque ela embaraça a efetivação da política indigenista, contribuindo para a intensificação da violência contra comunidades indígenas.
Após quase oito meses de debates, sem a participação do movimento indígena, as negociações seguem sem desfecho, embora seu prazo final já tenha se esgotado. Sobressai a falta de clareza, de objetividade e de metodologia nos debates travados na mesa de conciliação.
Essa é a maior demonstração de como o Estado brasileiro lida com o direito de acesso à justiça e de consulta dos povos indígenas. É um contrassenso, já que as propostas levadas para a mesa tendem a regulamentar até mesmo a consulta livre, prévia, informada e de boa-fé sem que sejam consultados os indígenas e suas organizações tradicionais.
Qual seria a legitimidade de uma mesa de negociação sobre direitos indígenas sem a presença e participação dos indígenas autores da ação, inclusive com sua manifesta oposição?
Não poderia ter outra direção o Supremo, diante desse cenário, que finalizar o julgamento dos embargos de declaração no Tema 1031. Ainda, e por um mínimo de coerência, declarar de plano a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, já responsável, nesse período de vigência, por muitas e graves violações de direitos humanos contra comunidades inteiras.