As medidas de urgência no contexto da arbitragem exercem papel crucial para a efetividade da jurisdição privada, garantindo a utilidade prática do processo e a preservação de direitos até o julgamento do mérito.
A Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996), após a reforma promovida pela Lei 13.129/2015, passou a regulamentar expressamente a possibilidade de concessão de medidas cautelares e de urgência tanto pelo juízo estatal quanto pelos próprios árbitros[1], observadas a instituição da arbitragem e as disposições convencionais entre as partes.
Inicialmente, é importante destacar que as partes gozam de ampla autonomia para definir os contornos procedimentais da arbitragem, inclusive quanto à possibilidade ou não de o árbitro apreciar medidas de urgência. De acordo com Cahali, admite-se até mesmo a exclusão total do poder do árbitro de apreciar tais medidas, o que, contudo, não inviabiliza o acesso ao Judiciário para garantir a efetividade do direito material[2].
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Nos casos em que a arbitragem ainda não foi instituída, ou seja, quando o tribunal arbitral ainda não está formado, o juízo estatal exerce papel subsidiário e excepcional, podendo conceder medidas de urgência em caráter antecedente, conforme artigo 22-A da Lei de Arbitragem. Nessa hipótese, o prazo para que a parte interessada instaure o procedimento arbitral é de 30 dias, sob pena de perda da eficácia da medida deferida.
A doutrina e a jurisprudência têm prestigiado a tese de que o cumprimento do prazo não exige a instituição formal da arbitragem, bastando que a parte demonstre ter adotado providências para tanto — como a notificação da outra parte para assinar o compromisso arbitral ou provocar a mediação prévia, quando exigida por cláusula escalonada.
Para Carmona, basta apenas que a parte interessada comprove a adoção de medidas para a nomeação do tribunal arbitral, como a notificação da parte contrária no caso de arbitragem ad hoc[3].
Exemplos desse entendimento podem ser extraídos de decisões como a do TJDFT, que manteve tutela provisória durante o curso de mediação pré-arbitral, impondo o prazo de 30 dias para instauração da arbitragem após o encerramento da mediação[4]. Da mesma forma, o TJSP já reconheceu a possibilidade de renovação do pedido de tutela provisória, diante de perigo de dano ao autor da ação, e estabeleceu o reinício do prazo de 30 dias a partir dessa renovação[5].
Quanto às cláusulas compromissórias “vazias”, nas quais não há regulamento nem instituição previamente definida, a jurisprudência tem exigido que a parte requeira à contraparte a assinatura do compromisso arbitral antes de buscar o Judiciário. O TJRJ, nesse sentido, já reconheceu que a ausência dessa notificação faz cessar a eficácia da medida cautelar ou de urgência[6].
Durante o curso da arbitragem, uma vez instaurado o tribunal arbitral, a jurisdição estatal é afastada, cabendo exclusivamente aos árbitros a análise de medidas de urgência, conforme artigo 22-B da Lei de Arbitragem.
Há, contudo, exceções a essa regra, especialmente em casos de impossibilidade momentânea de funcionamento do tribunal arbitral — como morte, renúncia ou impedimento de árbitros. Nesses casos, o juízo estatal pode reassumir, de forma precária e improrrogável, a competência para apreciar medidas de urgência.
O STJ já reconheceu essa possibilidade, entendendo admissível, em razão da necessidade de preservar a efetividade da tutela pleiteada, submeter o pedido de tutela cautelar ao juízo estatal durante a arbitragem, quando houver impedimento momentâneo das atividades do juízo arbitral[7].
Como alternativa para os casos em que a arbitragem ainda não foi formalmente instituída, mas se busca manter a apreciação da medida de urgência pelo juízo arbitral, destaca-se a figura do árbitro de emergência, prevista em diversos regulamentos de câmaras arbitrais ao redor do mundo. A escolha pelo árbitro de emergência pode conferir maior celeridade à prestação jurisdicional, ao reduzir a intervenção do juízo estatal no procedimento, reforçando, assim, a autonomia das partes que optaram pela arbitragem como meio de resolução de eventuais conflitos.
Mas é possível que isso deixe de ser regra. Nos próximos dias, a presidência do TJRJ deverá proferir decisão no caso Iguá[8]. Nele, o estado do Rio de Janeiro e a Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa), buscam suspender, perante o juízo estatal, por meio de incidente de suspensão de liminar, a decisão cautelar proferida por um árbitro de emergência em procedimento arbitral envolvendo as partes.
Para o instituto da arbitragem, o que está em jogo é o entendimento do Judiciário sobre a sua competência para intervir em medidas cautelares proferidas no âmbito da arbitragem. Nesse ponto, o estado e a Agenersa argumentam que a decisão do árbitro de emergência fere o Decreto Estadual 46.245/2018, que estabelece ser competência do juízo estatal, e não arbitral, decidir sobre pedidos de tutela de urgência antecedentes à instituição da arbitragem em contratos de concessão envolvendo o estado[9].
Por outro lado, a concessionária, Iguá Rio de Janeiro, defende que o ente da Administração Pública, ao escolher pela arbitragem, não pode se valer de um sistema híbrido de jurisdição estatal e arbitral, já que decisões interlocutórias na arbitragem são irrecorríveis e sentenças não podem ser revistas no mérito.
Essa posição parece ser a correta. Nas palavras de Debora Visconte, presidente do CBAr, “impõe a prioridade temporal ao Juízo Arbitral. Ao Poder Judiciário cabe intervir apenas nos casos previstos em lei, como na ação anulatória ou na impugnação ao cumprimento de sentença (art. 33, caput e § 3º, da Lei nº 9.307/1996)”[10].
Ademais, relembra que “a decisão proferida no âmbito do procedimento do árbitro de emergência tem natureza preliminar e pode ser revista tanto por esse árbitro, após as manifestações das partes, quanto posteriormente pelo Tribunal Arbitral, quando constituído”.
Nesse contexto, vale destacar que a possibilidade de concessão de tutela de urgência pelos árbitros persiste mesmo diante de objeção à sua jurisdição, desde que haja análise prima facie da competência. Isso decorre do princípio da kompetenz-kompetenz, previsto nos artigos 8º e 20 da Lei de Arbitragem, segundo o qual cabe ao próprio tribunal arbitral decidir sobre sua competência[11].
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Importante destacar que o caso Iguá já representa uma ameaça aos limites até então consolidados entre a jurisdição estatal e arbitral, especialmente no tocante às medidas de urgência. Independentemente do desfecho, o mero conhecimento do pedido formulado incentiva que outros agentes busquem o mesmo caminho perante o Judiciário, colocando em xeque não apenas a segurança jurídica, mas também a credibilidade do instituto da arbitragem brasileira, transmitindo a ideia de que a autonomia da arbitragem no Brasil é frágil, sobretudo quando contratos de alto valor estão em jogo.
Apesar disso, a análise acima demonstra que a tendência da doutrina e jurisprudência, mesmo com tentativas de criar obstáculos, como se observa no caso Iguá, é ao fortalecimento da autonomia da arbitragem, sem perder de vista o papel subsidiário — e excepcional — do juízo estatal na proteção de direitos que demandem atuação imediata, especialmente em situações em que o tribunal arbitral ainda não esteja constituído ou se encontre temporariamente impossibilitado de atuar, observada a disposição sobre o árbitro de emergência.
[1] “Art. 22-A. Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência.
Parágrafo único. Cessa a eficácia da medida cautelar ou de urgência se a parte interessada não requerer a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias, contado da data de efetivação da respectiva decisão.
Art. 22-B. Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário.
Parágrafo único. Estando já instituída a arbitragem, a medida cautelar ou de urgência será requerida diretamente aos árbitros”.
[2] CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem: mediação, conciliação, tribunal multiportas. 9. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 338/339.
[3] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo, 3. ed., 2012, p. 327.
[4] TJDFT, AI 0701934-87.2017.8.07.0000, Rel. Des. Esdras Neves Almeida, 6ª Turma Cível.
[5] TJSP, AC 1011360-02.2016.8.26.0309, Rel. Des. Alexandre Marcondes, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 30/07/2018.
[6] TJRJ, ES 0077659-85.2020.8.19.0000, Rel.ª Des.ª Marcia Ferreira Alvarenga, 17ª Câmara Cível, j. 24/03/2021.
[7] “Em situações nas quais o juízo arbitral esteja momentaneamente impedido de se manifestar, desatende-se provisoriamente as regras de competência, submetendo-se o pedido de tutela cautelar ao juízo estatal; mas essa competência é precária e não se prorroga, subsistindo apenas para a análise do pedido liminar” (STJ, 3a T., REsp no 1.297.974, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 4/9/2012, v.u.).
[8] TJRJ, Suspensão de Liminar nº 0011523-33.2025.8.19.0000, Des. Ricardo Couto de Castro, Presidência.
[9] “Art. 4º Além dos requisitos previstos na Lei de Arbitragem, da convenção de arbitragem constará obrigatoriamente:
IV – a escolha do juízo da comarca do Rio de Janeiro como o competente para o processamento e julgamento da ação dos arts. 6º e 7º da Lei de Arbitragem, de pedidos de tutela provisória de urgência antecedentes à instituição da arbitragem, de pedidos de cumprimento de cartas arbitrais, inclusive para condução forçada de testemunhas, de decisões e sentenças arbitrais e da ação anulatória de sentença arbitral.
Parágrafo único. Sem prejuízo do acima exposto, os pedidos de tutela provisória de urgência antecedentes à instituição da arbitragem e a execução de decisões e sentenças arbitrais poderão ser ajuizados pelo Estado e pelas Entidades da administração pública estadual indireta no domicílio da parte contrária, quando as circunstâncias do caso assim o recomendarem”.
[10] EDITORIAL CONSULTOR JURÍDICO. Governo do RJ quer julgamento de arbitragem no Tribunal de Justiça. Consultor Jurídico, 23 fev. 2025. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2025-fev-23/governo-do-rj-quer-julgamento-de-arbitragem-no-tribunal-de-justica/>. Acesso em: 6 abr. 2025.
[11] Nesse sentido: “As medidas cautelares em curso na Justiça só podem ser revistas, para serem mantidas, alteradas ou revogadas, naquela jurisdição extrajudicial. E, do mesmo modo, novas medidas cautelares deverão ser dirigidas ao Tribunal Arbitral. Lei 9.307/96, arts. 19, 22-A, 22-B e seu parágrafo único. A pendência de questão acerca da submissão à arbitragem de terceiros, também ela incumbe aos árbitros: Kompetenz, kompetenz, arts. 8º e 20 da Lei de Arbitragem. Recurso de que se não conhece, falecendo competência do Judiciário para o que pretende a parte recorrente.” (TJSP, AI 2046909-08.2019.8.26.0000, Rel. Des. Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 17/04/2019).