Em 7 de março de 2025, os jornais de todo o mundo deram notícia da morte do ator britânico Gene Hackman. Tendo recebido duas vezes o Oscar, o prêmio mais famoso da indústria cinematográfica, Hackman eternizou personagens como Popeye Doyle, o policial durão de Operação França (1971), e Bill Daggett, o xerife de Os Imperdoáveis (1992). Seu papel de maior popularidade talvez tenha sido, contudo, o vilão Lex Luthor no filme Superman (1978). A morte de Hackman está, ainda hoje, cercada de algum mistério. Ele foi encontrado morto, juntamente com sua esposa, a pianista clássica Betsy Arakawa, dentro da casa onde viviam, no Novo México, sem nenhum sinal de arrombamento ou agressão.
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O que as investigações policiais revelaram é que ela teria falecido primeiro, vítima de uma síndrome pulmonar causada por hantavírus, enquanto Gene Hackman, que já contava com 95 anos de idade e padecia de Alzheimer avançado, somente teria morrido sete dias depois. As provas afastaram uma possível configuração de comoriência – situação de morte presumidamente simultânea, disciplinada em diversos país, inclusive no Brasil (Código Civil, art. 8º) – e suscitaram, sem perda de tempo, um rumoroso conflito em torno do testamento do ator, dono de uma fortuna estimada em 80 milhões de dólares.
Em seu testamento, Hackman deixava todos os seus bens exclusivamente para Betsy, excluindo completamente seus três filhos, frutos de um relacionamento anterior. Os três filhos se disseram surpreendidos com a disposição e, também, com o fato de que diversos bens do casal estavam em nome de Betsy, que, por sua vez, não possuía herdeiros e havia estipulado em seu próprio testamento que, no momento de sua morte, todo o seu patrimônio deveria ser destinado a instituições de caridade[1].
Em suma, se Hackman tivesse falecido alguns dias ou mesmo minutos antes de sua esposa, toda sua fortuna seria transmitida a Betsy e, com sua morte posterior, transmitidos, ao fim e ao cabo, a instituições de caridade. Entretanto, a investigação policial, incluindo as perícias médicas, constatou justamente o contrário: Betsy faleceu antes de seu marido e, portanto, o testamento de Gene Hackman que a elegia como única beneficiária é considerado “caduco”, isto é, perde eficácia à luz da legislação local, o que acabaria por transmitir sua fortuna aos seus três filhos. O debate parece longe de terminar, mas a hipótese atraiu a atenção do público para um dos problemas mais controvertidos do Direito Civil contemporâneo: a herança legítima.
Uma pessoa pode destinar todo seu patrimônio a uma determinada pessoa excluindo seus herdeiros, em especial seus filhos? A resposta, no direito brasileiro, sempre foi negativa. Como se sabe, a legislação brasileira reserva metade da herança aos chamados herdeiros necessários elencados no artigo 1.845 do Código Civil: os ascendentes, os descendentes e o cônjuge. Esta reserva legal, que se denomina herança legítima, é comum em países alinhados à tradição romano-germânica (civil law), embora possa variar em relação à sua extensão e aos seus beneficiários. Países de common law, ao contrário, costumam assegurar maior liberdade ao testador, permitindo que disponha livremente de todos os seus bens, com algumas poucas e bem delimitadas ressalvas.
No Brasil, as críticas à herança legítima têm se ampliado. Muitos autores têm sustentado que a reserva de metade da herança aos herdeiros necessários consiste em intervenção indevida do legislador na livre disposição dos bens que o testador amealha em vida. Se uma pessoa pode consumir todo o seu patrimônio em vida – não há vedação legal a isso –, por que não poderia deixar todo o mesmo patrimônio para alguém que não seja seu herdeiro necessário ou para uma instituição qualquer, como uma entidade beneficente ou um clube de futebol?
A justificativa para a reserva da herança legítima sempre foi a necessidade dos herdeiros, em especial dos filhos. Soa um tanto aviltante que alguém possa deixar os filhos em desamparo por conta de uma deliberada destinação do seu patrimônio a outrem. Esta era a preocupação que historicamente era invocada para defender a herança legítima. Todavia, na realidade atual, em que a expectativa média das pessoas supera 60 anos, é muito comum que a herança legítima acabe sendo destinada a filhos que já têm patrimônio próprio e vida profissional consolidada. A herança legítima acaba, assim, servindo apenas para preservar a riqueza dentro das famílias. Além disso, se a função fosse mesmo evitar o desamparo ou a real necessidade dos herdeiros, faria mais sentido limitar a herança legítima a categorias mais específicas, tais como “(a) filhos menores; (b) filhos maiores incapazes ou com deficiência; (c) ascendentes idosos; (d) cônjuge ou companheiro que não tenha condições econômicas de manter seu padrão de vida e não tenha sido contemplado com meação”.
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O Código Civil Argentino, promulgado em 2015, deu um passo neste caminho, ao permitir a destinação de um terço (1/3) da herança legítima em benefício de descendentes ou ascendentes com deficiência, conforme art. 2.448. O Projeto de Lei n. 4/2025, que trata da atualização do Código Civil brasileiro, parece ter se inclinado na mesma direção, ao propor a inclusão de um parágrafo único no atual artigo 1.846: “Parágrafo único. O testador, se quiser, poderá destinar até um quarto da legítima a descendentes e ascendentes que sejam considerados vulneráveis ou hipossuficientes”. É um avanço, embora ainda tímido: o ideal seria que a herança legítima passasse a ser vista não mais como bloqueio intransponível à vontade do testador, mas como uma proteção invocável apenas diante de uma necessidade real dos herdeiros necessários. Isso aproximaria os institutos da herança legítima e dos alimentos, o que permitiria aproveitar toda a construção já consolidada em torno da necessidade do alimentando, com vistas à construção de um direito sucessório mais realista, que, em vez de trabalhar com categorias demasiadamente abstratas, respeitasse a vontade do testador, impedindo-o apenas de deixar seus sucessores em desamparo.
Vejamos, com o perdão do trocadilho, o que o futuro nos reserva.
[1] “Gene Hackman deixou US$ 80 milhões para mulher e não para os três filhos” (Folha de S. Paulo, 14.3.2025).
[2] Sobre o perfil funcional da legitima, ver Anderson Schreiber e Francisco de Assis Viégas, Por uma releitura funcional da legítima no direito brasileiro, in Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 19, ano 6, p. 211-250, São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2019.
[3] Idem, p. 244.