Concessões onerosas desafiam universalização do saneamento

A cobrança de ônus de outorga tem sido um padrão nas concessões de abastecimento de água a esgotamento sanitário outorgadas nos últimos anos no país. Essa cobrança envolve o pagamento de valores quase sempre expressivos realizado pelo concessionário ao titular do serviço, geralmente no início da execução do contrato de concessão, como contrapartida ao exercício de seu direito de exploração do negócio.

Praticamente todas as grandes concessões do setor contratadas desde a edição do novo marco legal do saneamento básico contaram com receita desta natureza. Alguns projetos previram ainda a cobrança de uma outorga variável, definida a partir de um percentual da receita da concessão.

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É claro que o ônus de outorga integra, numa acepção mais ampla, o conjunto de despesas e investimentos programados pelo concessionário para a prestação do serviço. Isso significa que essa cobrança acaba onerando o próprio usuário do serviço, que passa a suportar uma tarifa mais cara em razão da incorporação (mesmo que indireta) desse “custo” no fluxo de caixa do projeto.

Mas a cobrança de ônus de outorga tem sido defendida por muitos como uma solução regulatória para melhorar a performance dos leilões, restringindo o acesso de participantes sem a capacidade econômica necessária para suportar os investimentos demandados para a execução da concessão.

Além disso, sustenta-se que o uso deste critério de seleção de ofertantes, que pressupõe tarifas pré-determinadas, pode contribuir para mitigar o fenômeno da “maldição do vencedor”. Nestes casos, o valor da tarifa pode ser pré-determinado em patamares que protejam o fluxo de caixa do projeto e o atingimento dos covenants contratados com financiadores, melhorando-se a sua financiabilidade.

Tudo isso é verdade. Mas é claro que essa restrição de acesso, por outro lado, reduz a competitividade na licitação e encarece o valor da tarifa. É necessário, portanto, equacionar bem a cobrança de outorga com a fixação de valores tarifários módicos. Critérios híbridos, que combinam lances de maior valor de outorga com o de menor valor de tarifa, podem ser uma solução adequada, em muitos casos.

Em termos práticos, é perceptível que a preferência pela cobrança de outorga tem tido subjacentemente um interesse fiscal e arrecadatório. Muitas vezes, o que estimula o ente público a conceder a prestação do serviço é o interesse em engordar o seu caixa com a arrecadação dos valores de outorga. Seja como for, o fato é que no setor de saneamento básico, em que tem prevalecido a prática de tarifas regionais determinadas pelas agências reguladoras, a cobrança de ônus de outorga surge em muitos casos como um critério prioritário de seleção de ofertantes.

O grande problema da cobrança de outorga nas concessões de saneamento básico relaciona-se com a desvinculação dessas receitas às finalidades do programa de universalização do serviço. Como regra, a receita extraída dos pagamentos de outorga tem sido apropriada pelo caixa dos municípios e estados, sendo consumida para o custeio de outras necessidades do ente público ao invés de contribuir para subsidiar a universalização dos serviços de saneamento básico em outras localidades.

Essa prática desafia a promoção da regionalização dos serviços, acolhida como uma importante diretriz da política nacional de saneamento básico, pelo artigo 49, XIV, da Lei 11.445/2007. Uma das principais funções da regionalização é precisamente prover os subsídios cruzados entre localidades com maior e menor potencial econômico para contribuir com o custeio da prestação do serviço.

Há uma série de normas legais e regulamentares que incumbem os federados de criar estruturas de regionalização para possibilitar a prestação regionalizada do serviço, com delimitações territoriais que assegurem a autossustentabilidade econômica das operações.

Por isso, a extração de recursos de determinadas concessões locais ou regionais, por meio da cobrança de ônus de outorga, para custear necessidades alheias à universalização do saneamento afronta a diretriz de regionalização estabelecida na legislação. Na minha visão, já era tempo de o regulador conceber soluções regulatórias voltadas a evitar a evasão desses recursos do setor de saneamento básico, fundamentais para o avanço da agenda de universalização do serviço.

Uma solução que poderia ser adotada, enquanto não se viabilizam prestações regionalizadas em maior escala, está na constituição de fundos vocacionados a subsidiar a universalização do serviço. Os recursos oriundos do pagamento de ônus de outorga em concessões de abastecimento de água ou esgotamento sanitário deveriam ser, total ou parcialmente, endereçados a fundos de universalização.

Para que concessões locais estejam submetidas a esta vinculação, é necessário que a regionalização tenha sido constituída e a autoridade regional, instituída, por meio de uma governança interfederativa que garanta o exercício compartilhado da titularidade. Se remanescem operações locais dentro da área regionalizada, caberá à autoridade regional operacionalizar fundos de subsídios à universalização, nos termos do artigo 31 da Lei 11.445/2007, carreando receitas de outorga para subsidiar o custeio da prestação do serviço em áreas menos favorecidas.

Enquanto os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário não estiverem integralmente regionalizados dentro do território do estado, mecanismos como esse podem ser fundamentais para evitar a fuga de recursos importantes para o custeio da universalização do saneamento.

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