Como ensinar a linguagem da norma para a inteligência artificial?

Treinar uma inteligência artificial para atuar com segurança e precisão no setor jurídico exige mais do que apenas acesso a grandes volumes de dados. É preciso compreender a natureza do Direito como linguagem e como sistema, e integrar práticas de engenharia de IA que priorizem confiabilidade, rastreabilidade e aderência a um domínio altamente especializado. Em um campo onde autoridade técnica é pilar de legitimidade, a palavra-chave é confiança.

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Grandes modelos de linguagem (Large Language Models – LLMs), como os utilizados em soluções de IA generativa, funcionam com base em aprendizado estatístico: eles identificam padrões em sequências textuais e aprendem a prever, com alta acurácia, a próxima palavra ou sentença em determinado contexto. Embora esse mecanismo seja generalista, ele se mostra especialmente potente no Direito, onde a produção e o consumo de informação são intensivos em texto. O jurídico é um dos setores que mais produz conteúdo estruturado e não estruturado – leis, jurisprudências, pareceres, contratos, doutrinas – que se interconectam em camadas para construir significado normativo. Essa complexidade exige que a IA seja treinada não só com volume, mas com qualidade e curadoria.

Diferente de aplicações mais abertas, como chatbots generalistas, no Direito é essencial operar com bases de dados estruturadas, constantemente atualizadas e supervisionadas por especialistas humanos. Esse processo de curadoria garante que a IA entenda os contextos legais corretos, evite anacronismos e reduza significativamente a incidência de alucinações e confusões (ou, mais acertadamente, suposições algorítmicas). Um bom modelo jurídico precisa aprender, por exemplo, que uma tese ou uma jurisprudência de 2015 podem ter sido superadas por uma única decisão vinculante posterior. Sem essa noção temporal e sistêmica – que depende de metadados e filtros bem definidos – a IA compromete a confiança da pessoa usuária.

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O papel do humano no treinamento e orquestração do modelo permanece fundamental. Em IAs jurídicas, a abordagem human in the loop não é opcional: ela é absolutamente necessária. Essa abordagem garante que os sistemas sejam treinados por especialistas de domínio. No caso do Direito, são as pessoas que conhecem o raciocínio jurídico e as formas específicas de pesquisa, interpretação e redação típicas da área. Isso implica em incorporar regras de decisão, modelos de documentos e estratégias argumentativas no fine-tuning (treinamento) do modelo. Em muitos casos, adotar agentes especializados e arquiteturas retrieval-augmented generation (RAG) com indexação de bases jurídicas confiáveis e bem estruturadas, que permitem respostas ancoradas em documentos reais e previamente selecionados. Estamos diante não apenas de uma nova tecnologia, mas também de uma nova profissão para as pessoas advogadas. 

Outro aspecto essencial é a governança dos dados. Como o Direito lida com informações sensíveis – muitas vezes envolvendo litígios, contratos confidenciais e dados pessoais –, é indispensável garantir que nenhuma informação da cliente seja usada inadvertidamente no treinamento dos modelos. Isso requer políticas de anonimização, segregação de dados e, sobretudo, transparência nos termos de uso. Ferramentas jurídicas de IA devem deixar claro se os dados são apenas processados em tempo real (inference) ou se são utilizados para melhorar o modelo via fine-tuning. A conformidade com legislações como a LGPD é mandatória, mas não suficiente: o padrão de mercado deve ser o da responsabilidade por design.

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Por fim, para que a IA seja confiável no mercado jurídico, ela precisa ser auditável. Não basta entregar uma resposta plausível – é preciso mostrar de onde veio. Neste ponto, a lógica é basicamente a mesma do humano: a argumentação jurídica deve sempre ser embasada. Soluções responsáveis incorporam mecanismos de rastreabilidade que permitem ao usuário verificar as fontes utilizadas, seja de legislação, jurisprudência ou de doutrina. Isso é particularmente crítico em ambientes onde a autoridade da fonte é parte do valor do conteúdo. 

Embora o desafio técnico de construir um IA confiável para o Direito seja alto, os ganhos potenciais já começam a se materializar. Ferramentas de automação, busca e assistência redacional estão reduzindo o tempo de análise e aumentando a precisão em tarefas repetitivas. De acordo com uma pesquisa recente realizada pelo Jusbrasil em parceria com a OAB/SP, a Trybe e o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS), mais da metade dos advogados brasileiros já utiliza IA no exercício da profissão. A transformação está em curso – e o mercado de tecnologia que souber tratá-la com responsabilidade e profundidade técnica certamente sairá na frente.

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