Um novo fundamento tem sido invocado pela Aduana Brasileira para aplicar a pena de perdimento de mercadorias no comércio exterior: a desconformidade da mercadoria importada com normas técnicas da ABNT. Essa conduta vem sendo enquadrada como atentatória à ordem pública e lesiva ao erário, considerando que o art. 39, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor classifica como prática abusiva a disponibilização de mercadoria em desacordo com norma expedida pela ABNT no mercado de consumo.
O fundamento, no entanto, é bastante controverso, em razão da natureza das normas da ABNT e da necessária filtragem constitucional para a exigibilidade compulsória no âmbito do controle aduaneiro.
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A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) é uma entidade privada e sem fins lucrativos, responsável pela elaboração de padrões técnicos em diversas áreas, como engenharia, construção civil, meio ambiente e tecnologia. Suas normas estabelecem parâmetros de qualidade, segurança e eficiência para produtos, serviços e processos. Ao contrário dos regulamentos expedidos por órgãos públicos, as normas da ABNT não são veiculadas em Diário Oficial e seu acesso depende de pagamento, o que compromete sua publicidade e acessibilidade. Por isso, um primeiro aspecto a ser considerado na análise jurídica da matéria é que as normas da ABNT não possuem, por si só, força cogente, salvo quando expressamente incorporadas ao ordenamento jurídico por ato normativo. Já nestas notas iniciais fica explícito o problema de constitucionalidade da pena de perdimento fundamentada na inobservância das normas da ABNT.
Na representação piramidal idealizada por Hans Kelsen, a hierarquia normativa impõe que as normas infraconstitucionais – como leis, decretos e regulamentos – devem conformar-se aos princípios e disposições constitucionais, sob pena de comprometer a sua validade jurídica. Assim, no ordenamento jurídico, a Constituição ocupa a posição de norma jurídica mais elevada, servindo como fundamento último de validade para onde convergem todas as normas infraconstitucionais.
Entre as disposições constitucionais, aquelas de caráter principiológico ou de postulados prevalecem sobre as demais regras, por carregarem alta carga valorativa. Os princípios constitucionais são os pilares do ordenamento jurídico, caracterizados como normas fundamentais informadoras da organização jurídica de um estado democrático de direito.
A norma jurídica adquire validade quando produzida por órgão credenciado pelo sistema, em conformidade com o procedimento previsto no ordenamento, fundada em outra norma de superior hierarquia, eis o conceito de validade firmado por Paulo de Barros Carvalho.
Nesta linha, a publicidade dos atos normativos constitui princípio basilar do ordenamento jurídico brasileiro (art. 37, caput, da CF), o qual determina que as normas jurídicas só produzirão efeitos após serem devidamente publicadas em veículos oficiais, nos Diários Oficiais. Ademais, o princípio da legalidade impõe que o Poder Público somente poderá impor obrigações e penalidades com respaldo em lei (art. 5º, inc. II, da CF). Acontece que as normas da ABNT não são disponibilizadas em Diário Oficial e seu acesso depende de aquisição onerosa, de modo que sua exigência configura violação aos princípios da legalidade, razoabilidade, segurança jurídica e previsibilidade da Administração Pública.
Ainda que o Código de Defesa do Consumidor considere como prática abusiva a disponibilização de mercadoria, no mercado de consumo, em desacordo com norma expedida pela ABNT, trata-se de norma jurídica incompatível com a ordem constitucional. Por serem concebidas por entidade privada, as normas da ABNT não são públicas e não são fornecidas gratuitamente aos cidadãos. Obrigar o indivíduo a estar em conformidade com a norma da ABNT sob pena de incidência do perdimento da mercadoria é impor a vinculação do importador a documento de natureza particular que – necessariamente – deve ser adquirido para que se tenha ciência do seu conteúdo. Caso a norma da ABNT não tenha sido internalizada no sistema jurídico (princípio da legalidade) e nem publicizada em canal oficial (princípio da publicidade), pode-se afirmar que não haverá obrigatoriedade o seu cumprimento, sob pena de violação ao texto constitucional.
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Um segundo aspecto a ser considerado são os tratados internacionais que interseccionam o tema. O principal deles é o GATT, Acordo Geral de Tarifas e Comércio, originalmente firmado em 1947, para a promoção do comércio mundial e redução das barreiras comerciais. Após o encerramento da Rodada do Uruguai de Negociações, em 1994, buscou-se a liberalização e a multilateralização do comércio mundial, sendo estabelecida a aplicação obrigatória entre os países membros, chamados de partes contratantes. O Brasil referendou o GATT através do Decreto Legislativo n. 30/1994 e promulgou-o pelo Decreto n. 1.355/1994.
No âmbito do GATT/94 foi aprovado o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (Acordo “TBT”), com o foco de garantir a padronização entre regulamentos técnicos, normas técnicas e procedimentos de avaliação de conformidade entre as partes contratantes. Importante para a presente análise, o Acordo TBT conceituou regulamento técnico e norma técnica, sendo o primeiro um documento que enuncia as características de um produto ou os processos e métodos de produção a ele relacionados, cujo comprimento é obrigatório, enquanto a norma técnica é o documento emitido por um organismo reconhecido que fornece regra, diretrizes ou características de produtos, serviços, processos ou métodos de produção, cuja observância é voluntária. Logo, em conformidade com o Acordo TBT, uma norma técnica da ABNT, por si só, não tem cumprimento obrigatório, a não ser que seja devidamente incorporada no ordenamento jurídico mediante o ato legislativo adequado.
Por fim, um último ponto a ser analisado é sobre a efetiva incidência do Código de Defesa do Consumidor como fundamento para a aplicação da pena de perdimento. Consumidor é definido no art. 2º do CDC como aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Assim, tomando como base a teoria finalista utilizada pelo STJ, se o produto importado será revendido no mercado interno para ser implementado na atividade econômica do adquirente não hipossuficiente, também é bastante questionável a aplicação do Código Consumerista.
A questão assume maior relevância ao se considerar que a pena de perdimento possui natureza excepcional e deve ser aplicada apenas em situações expressamente previstas na legislação. Sanções dessa gravidade devem ser interpretadas de forma restritiva, evitando ampliações indevidas por meio de atos administrativos ou critérios não respaldados por lei.
Portanto, principalmente sob a ótica constitucional, mostra-se infundada a aplicação da pena de perdimento a mercadorias importadas com fundamento em desconformidade com norma técnica da ABNT não internalizada pelo sistema jurídico pátrio. Uma norma não publicizada, não adquire validade jurídica, pois dispor de maneira diversa seria exigir de todo e qualquer cidadão que efetivamente “compre” uma “norma” para ter acesso ao objeto.
Conclui-se, com as palavras do professor Paulo de Barros Carvalho, sobre o prestígio dos princípios constitucionais, que “(…) os valores e sobrevalores que a Constituição proclama hão de ser partilhados entre os cidadãos, não como quimeras ou formas utópicas simplesmente desejadas e conservadas como relíquias na memória social, mas como algo pragmaticamente realizável, apto, a qualquer instante, para cumprir seu papel demarcatório, balizador, autêntica fronteira nos hemisférios da nossa cultura”.