Ciberdelinquência de gênero no Brasil: desafios e respostas legais

A transformação da sociedade das últimas décadas, por meio da “revolução digital”, trouxe profundas mudanças nas formas de interação social, profissional e política. Junto aos benefícios da conectividade emergiram novas formas de violência, entre elas a ciberdelinquência de gênero, que atinge de forma desproporcional mulheres e meninas. Essa forma de violência é caracterizada por ataques realizados por meio de tecnologias da informação e comunicação, como redes sociais, aplicativos de mensagens e outras plataformas digitais, e engloba práticas como assédio, ameaças, divulgação de conteúdo íntimo sem consentimento, perseguição, humilhação e incitação ao ódio.

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Dados internacionais evidenciam a gravidade do problema. Uma pesquisa realizada em 2020 pela World Wide Web Foundation com participantes de 180 países revelou que 52% das mulheres jovens e meninas já sofreram abusos online, como o compartilhamento não consentido de imagens, vídeos ou mensagens privadas, linguagem ofensiva, ameaças, assédio sexual e divulgação de conteúdos falsos. Além disso, 64% dos entrevistados afirmaram conhecer alguém que foi vítima dessas práticas.

Outra pesquisa, realizada em 2019 pela Delegación Contra la Violencia de Género, com 10.000 participantes, indicou que 7,4% das pessoas com 16 anos ou mais já haviam recebido mensagens inapropriadas, humilhantes ou intimidatórias por meio das redes sociais. Quando se consideram apenas os casos de assédio sexual, 18,4% das vítimas relataram que esse tipo de violência ocorreu no ambiente digital.

Tomando o Brasil como referência, constatou-se, segundo uma pesquisa realizada em 2020 pela ONG Plan International, que 77% das meninas e jovens mulheres brasileiras relataram ter sofrido algum tipo de assédio virtual. Esse percentual é significativamente superior à média global de 58%, indicando uma prevalência alarmante desse tipo de violência no país.

No Brasil, o enfrentamento da ciberdelinquência de gênero é feito com base em um conjunto de leis que, embora não unificadas sob uma legislação específica, oferecem respaldo jurídico para a responsabilização dos agressores e proteção das vítimas. A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), voltada à proteção das mulheres contra a violência doméstica e familiar, também tem sido utilizada em casos de violência no ambiente digital, especialmente em situações de violência psicológica e moral, como ameaças, chantagens e humilhações por meio de redes sociais e aplicativos. Com a promulgação da Lei nº 14.188/2021, a violência psicológica contra a mulher foi expressamente incluída no Código Penal, por meio do artigo 147-B, permitindo sua aplicação direta em contextos virtuais.

A Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/2012), por sua vez, tipifica os crimes cibernéticos, como a invasão de dispositivos eletrônicos, sendo fundamental em casos de violação de privacidade, vazamento de dados ou fotos íntimas de mulheres. Já a Lei de Importunação Sexual (Lei nº 13.718/2018) criminaliza a divulgação não consentida de cenas de estupro, nudez ou sexo, prática recorrente nos casos de “revenge porn” (pornografia de vingança), com previsão de pena de 1 a 5 anos de reclusão, conforme o artigo 218-C do Código Penal.

A perseguição online, conhecida como stalking virtual, também é abordada pela Lei nº 14.132/2021, que criminaliza esse tipo de conduta, caracterizada por monitoramento constante, ameaças e invasões de privacidade por meio digital. Além disso, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), embora não seja uma norma penal, estabelece princípios, garantias e deveres para o uso da internet no Brasil, incluindo a possibilidade de remoção de conteúdos ofensivos que violem direitos da personalidade, o que se aplica diretamente a casos de violência contra a mulher no ambiente virtual.

Outras legislações relevantes incluem a Lei 13.431/2017, voltada à proteção de crianças e adolescentes, que pode ser utilizada em situações de violência digital envolvendo meninas, sobretudo em casos de aliciamento, assédio ou exposição a conteúdos sexuais. Já a Lei nº 14.540/2023, conhecida como Lei da Violência Política de Gênero, prevê punição para atos praticados contra mulheres no exercício de seus direitos políticos, inclusive em ambientes virtuais, como ataques sexistas, deslegitimação pública, ofensas e ameaças em redes sociais.

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Apesar do avanço normativo, a resposta institucional à ciberdelinquência de gênero no Brasil ainda enfrenta limitações. A fragmentação legal dificulta a aplicação uniforme das normas, e a falta de preparo de agentes públicos pode comprometer a acolhida das vítimas e a efetiva responsabilização dos agressores. Para enfrentar esse cenário, é necessário adotar medidas integradas, como a implementação de políticas públicas de prevenção e combate à violência de gênero online, campanhas de educação digital com enfoque em igualdade de gênero, capacitação de profissionais da segurança pública e do judiciário, fortalecimento das delegacias especializadas em crimes cibernéticos e ampliação dos canais de denúncia e suporte psicológico.

Também é fundamental que as plataformas digitais assumam maior responsabilidade na moderação de conteúdos, adotando mecanismos eficazes de denúncia, remoção ágil de materiais abusivos e preservação de provas para fins legais. A luta contra a ciberdelinquência de gênero exige uma abordagem multidisciplinar, que envolva o Estado, a sociedade civil, o setor privado e as instituições educacionais, garantindo às mulheres e meninas o direito de participar do ambiente digital de forma livre, segura e igualitária.

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