A transformação digital está redefinindo a governança corporativa, exigindo que os conselhos de administração incorporem novas tecnologias e promovam maior transparência. Temas como a adoção de inteligência artificial (IA) nos conselhos e o uso de ferramentas digitais (blockchain, assembleias virtuais, portais de voto eletrônico) ganham destaque, trazendo mudanças objetivas na forma como as empresas são dirigidas e prestam contas.
Em 2014, a empresa de capital de risco Deep Knowledge Ventures, de Hong Kong, nomeou um algoritmo de IA chamado Vital como membro do seu conselho de diretores, concedendo-lhe poder de voto equivalente ao dos conselheiros humanos [1]. Esse caso pioneiro evidenciou o potencial da IA em auxiliar decisões estratégicas corporativas. Desde então, organizações ao redor do mundo têm explorado como a IA pode complementar (e não substituir) os conselhos, melhorando a eficiência e a eficácia na tomada de decisões.
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Uma pesquisa global de 2024 reflete essa tendência ao revelar que 55% das empresas já possuem um comitê ou “conselho de IA” dedicado – grupo responsável por supervisionar iniciativas de inteligência artificial –, e 54% contam com um executivo líder de IA para orquestrar essas atividades tecnológicas internamente[2].
No entanto, ainda há desafios na capacitação e governança desse recurso. Muitas organizações carecem de especialistas em IA nos conselhos e na alta gestão, o que incentiva iniciativas de formação e diretrizes de boas práticas.
No Brasil, entidades de referência em governança vêm atuando para preencher essa lacuna. Em outubro de 2024, o IBGC, em parceria com empresas de tecnologia, lançou o Guia de Inteligência Artificial para Conselheiros de Administração, orientando os board members sobre a integração ética e eficaz da IA nas estratégias corporativas[3]. 7
Esse guia destaca que é papel dos conselhos “definir a visão e estabelecer as diretrizes estratégicas para a adoção da IA na organização”, assegurando a gestão de riscos adequada, o engajamento dos stakeholders, além de transparência e conformidade no uso da tecnologia. Ou seja, espera-se que o conselho tenha protagonismo na governança da IA, alinhando inovação aos objetivos de longo prazo da empresa.
Paralelamente, a transformação digital trouxe novas ferramentas para ampliar a transparência nas relações com acionistas e demais partes interessadas. Um exemplo claro é a modernização das assembleias de acionistas e dos processos de voto. Historicamente, assembleias gerais ocorriam de forma presencial e com participação limitada, mas isso vem mudando.
Em 2020, diante das restrições da pandemia, a CVM alterou a regulamentação para permitir assembleias gerais totalmente digitais – a Instrução CVM 622/2020 (posteriormente revogada pela Resolução 81/2022) autorizou companhias abertas a realizarem assembleias virtuais, com participação e votação a distância. Essa medida viabilizou a continuidade dos processos decisórios sem comprometer a segurança jurídica.
Como resultado, na temporada de assembleias de 2020, quase 30% das companhias abertas adotaram formatos digitais: em uma amostra de 298 empresas, 22% realizaram a assembleia de acionistas de modo exclusivamente virtual e 7% em modelo híbrido (misturando participação presencial e online)[4].
O regulador agiu rapidamente para oferecer essa alternativa, garantindo que as obrigações de governança pudessem ser cumpridas remotamente. Juntamente com as assembleias digitais, consolidou-se o uso do boletim de voto à distância (voto eletrônico antecipado): naquele mesmo ano, 191 companhias receberam votos por via eletrônica, embora a maioria dessas participações tenha vindo de investidores estrangeiros – investidores locais representaram apenas cerca de 2% dos votos enviados remotamente, indicando espaço para maior engajamento doméstico nessas plataformas.
As ferramentas tecnológicas implementadas nessas assembleias virtuais aumentaram a prestação de contas. A CVM passou a exigir, por exemplo, que os sistemas eletrônicos registrem a presença e os votos dos acionistas, permitam interação à distância e façam a gravação integral das reuniões, criando um repositório audível das decisões tomadas. Tais medidas reforçam a confiabilidade do processo e facilitam eventuais fiscalizações ou auditorias, promovendo transparência.
Além das plataformas de votação online, desponta no horizonte o uso do blockchain para tornar os registros societários ainda mais seguros e rastreáveis. Em 2017, a Nasdaq (bolsa de valores norte-americana) conduziu um piloto bem-sucedido de votação eletrônica de acionistas utilizando tecnologia blockchain na bolsa de Tallinn, na Estônia[5]. Essa iniciativa permitiu que investidores votassem remotamente em assembleias, com os votos sendo gravados em um registro distribuído imutável.
O experimento demonstrou ganhos de eficiência ao eliminar etapas manuais e criar um “registro único” confiável das votações, reduzindo riscos de fraude e erros nos resultados. Em outras palavras, a tecnologia blockchain funciona como um livro ata digital inviolável compartilhado por todos os participantes, o que pode aumentar a confiança entre acionistas.
Ainda que projetos assim estejam em fase inicial, eles indicam um caminho promissor: no futuro, contratos inteligentes e blockchains poderão assegurar que deliberadamente todas as decisões societárias importantes fiquem transparentemente documentadas e verificáveis, tornando a governança corporativa mais robusta.
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Tais exemplos ilustram como Brasil e outros países estão incorporando inovações digitais na governança. No exterior, casos como o da IA Vital no conselho de Hong Kong e o uso de blockchain em assembleias pela Nasdaq expandiram as fronteiras do que se entendia por conselho de administração e por transparência societária. Já no Brasil, a digitalização das assembleias e do voto eletrônico, acelerada pela regulamentação da CVM, mostra como a adaptação tecnológica pode ocorrer de forma rápida e eficaz.
Conselhos de administração mais tecnicamente preparados, transparência aumentada via ferramentas digitais e suporte institucional (CVM, IBGC, etc.) formam em conjunto a base para que a governança corporativa evolua sem perder de vista seus princípios fundamentais. Em suma, ao abraçar a IA e a tecnologia blockchain, as companhias podem se tornar mais ágeis e confiáveis, desde que essa jornada seja guiada por uma governança sólida – alinhando inovação com responsabilidade, conforme preconizado pelas melhores práticas atuais.
[1] Disponível em: https://www.globenewswire.com/news-release/2014/05/13/635881/10081467/en/Deep-Knowledge-Venture-s-Appoints-Intelligent-Investment-Analysis-Software-VITAL-as-Board-Member.html
[2] Disponível em: https://www.gartner.com/en/newsroom/press-releases/2024-06-26-gartner-poll-finds-55-percent-of-organizations-have-an-ai-board#:~:text=A%20recent%20Gartner%2C%20Inc.,AI%20leader%20that%20orchestrates%20activities..
[3] Disponível em: https://ibgc.org.br/blog/conheca-guia-inteligencia-artificial-conselheiros.
[4] AMEC – Associação de Investidores no Mercado de Capitais, “B3 promove reflexão sobre a temporada de assembleias 2020 e voto a distância”. 31/01/2021. Disponível em: https://amecbrasil.org.br/b3-promove-reflexao-sobre-a-temporada-de-assembleias-2020-e-voto-a-distancia/. [6] Anna Irrera, “Nasdaq successfully completes blockchain test in Estonia”. Reuters – Technology News, 23/01/2017. Disponível em: https://www.reuters.com/article/nasdaq-blockchain-estonia-idUSL1N1FA1XK/.
[5] Anna Irrera, “Nasdaq successfully completes blockchain test in Estonia”. Reuters – Technology News, 23/01/2017. Disponível em: https://www.reuters.com/article/nasdaq-blockchain-estonia-idUSL1N1FA1XK/.