Risco de demanda por infraestrutura ferroviária concorrente nas concessões rodoviárias

Nos últimos anos, a política de autorizações ferroviárias avançou de forma significativa, acompanhada pela intensificação dos investimentos em logística. Segundo dados recentes da ANTT, desde a criação do regime de autorizações, foram registrados 108 requerimentos, apresentados por 52 entes privados. Atualmente, há 45 contratos de adesão vigentes, com projeção de cerca de R$ 241 bilhões em investimentos e mais de 12 mil quilômetros de novas ferrovias[1]. Nesse contexto, a convivência entre os modais rodoviário e ferroviário tende a se tornar cada vez mais comum em corredores logísticos estratégicos. Por isso, ganha relevância analisar como os contratos de concessão de rodovias federais têm tratado o risco de perda de demanda decorrente da concorrência intermodal.

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Os contratos mais antigos (Etapas 1 a 3) foram firmados em um período em que a reativação do transporte ferroviário não era prioridade. Por isso, não previam cláusulas específicas de reequilíbrio econômico-financeiro diante da concorrência com ferrovias. Como o risco de perda de tráfego por esse motivo não estava claramente atribuído nem ao concessionário nem ao Poder Concedente, a construção de uma ferrovia paralela era tratada como evento extraordinário e imprevisível. Nessas situações, cabia à concessionária comprovar que a concorrência ferroviária configurava fato imprevisível e extracontratual, nos termos do art. 65, II, d da Lei 8.666/93 (correspondente ao atual art. 124, II, d da Lei 14.133/21). Essa indefinição contratual frequentemente resultava em longas discussões ou disputas judiciais, diante da ausência de parâmetros objetivos previamente pactuados.

Foi apenas a partir da 4ª Etapa de Concessões de Rodovias Federais que os contratos passaram a prever expressamente o direito ao reequilíbrio diante da concorrência intermodal, especialmente quando provocada por ferrovias[2]. Um caso emblemático foi o contrato da BR-163/MT/PA, que já incorporava em seu objeto o risco de demanda relacionado à futura implantação da Ferrogrão, ferrovia projetada em eixo logístico paralelo.

Para mitigar esse risco, o contrato previu duas medidas relevantes. A primeira foi estabelecer prazo reduzido para a concessão (apenas 10 anos), programando-a para se encerrar antes da entrada em operação da nova ferrovia. Caso a implantação da Ferrogrão atrasasse, a ANTT poderia prorrogar provisoriamente a concessão rodoviária, conforme previsto na cláusula 3.3 do contrato[3]. Esse arranjo condicionava a continuidade da concessão rodoviária ao cronograma da ferrovia, evitando a sobreposição de modais concorrentes.

A segunda medida foi a inclusão de cláusula específica atribuindo ao Poder Concedente o risco decorrente da implantação de novas rotas ou caminhos terrestres concorrentes, tarifados ou não, que não estivessem previstos nos instrumentos oficiais de planejamento na data do edital. Nesses casos, admitia-se o reequilíbrio econômico-financeiro em favor da concessionária, desde que comprovado o impacto extraordinário na receita de pedágio[4].

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Vale destacar que esse contrato também foi firmado com uma matriz de riscos que atribuía integralmente à concessionária o risco de demanda. A sua cláusula 19.1 estabelecia que a concessionária seria integral e exclusivamente responsável por todos os riscos relacionados à concessão – inclusive os decorrentes de volumes de tráfego inferiores às projeções. A cláusula 19.2.5, contudo, representava uma exceção expressa a essa regra geral, ao prever o direito ao reequilíbrio diante da entrada de infraestrutura concorrente não prevista. Observe-se, portanto, que sua inclusão era essencial nesse contexto regulatório, pois, sem ela, a concessionária poderia ser obrigada a arcar integralmente com os efeitos de um evento sobre o qual não teve responsabilidade e cujas consequências estavam fora de seu controle.

Ainda na 4ª Etapa, outro caso de destaque foi a concessão da BR-153/414/080/GO/TO. A rodovia retornava ao mercado após uma tentativa fracassada de leilão e apresentava elevado risco de demanda, por estar paralela à Ferrovia Norte-Sul – ainda em fase de integração. Além disso, os estudos de viabilidade foram impactados pela pandemia de Covid-19, o que adicionou incertezas relevantes ao cenário projetado[5]. Para viabilizar o projeto, a ANTT incluiu um mecanismo automático de mitigação do risco de demanda, baseado em faixas de variação de receita, operando com base em dados efetivamente observados e prescindindo de discussões subjetivas sobre as causas da oscilação de tráfego.

Nesse modelo, o contrato previa a aplicação do mecanismo em dois ciclos: entre o 3º e o 6º ano e entre o 19º e o 25º ano da concessão, conforme estabelecido no Anexo 14. Fora desses intervalos, o mecanismo não se aplicaria. A lógica era oferecer proteção parcial em momentos mais críticos, isto é, logo após a fase inicial de investimentos e na reta final do contrato. Assim, buscava-se mitigar riscos de receita extremos, sem alterar a alocação geral do risco de demanda à concessionária. Se a receita acumulada ficasse abaixo do piso mínimo previsto, a ANTT compensaria a diferença via Conta de Ajuste; se ultrapassasse o teto, a concessionária devolveria o excedente[6].

A partir de então, todos os contratos rodoviários federais passaram a incorporar dispositivos específicos de compartilhamento do risco de demanda, os quais naturalmente abarcam em si os impactos decorrentes de eventual concorrência intermodal originalmente não previste. Não por outro motivo, segundo a própria ANTT, um dos principais fatores que motivaram essa padronização foi a entrada em vigor do Novo Marco Legal das Ferrovias, que instituiu o regime de autorizações ferroviárias em ambiente de livre mercado. Isso tornou todas as concessões rodoviárias potencialmente expostas a um risco difuso e imprevisível de concorrência intermodal, reforçando a necessidade de mecanismos automáticos de mitigação[7].

Por essa razão, os editais mais recentes já trazem essa abordagem desde a fase de alocação de riscos. A concorrência intermodal deixa, assim, de ser tratada como um evento fortuito e passa a ser abordada como uma hipótese contratualmente prevista, com instrumentos objetivos de compensação. Some-se a isso também o fato de que os investimentos obrigatórios passaram a ser atrelados a gatilhos de tráfego, o que permite adiar ou até suprimir obras de ampliação em caso de impacto negativo na demanda, como o decorrente da entrada em operação de ferrovias paralelas.

Esse novo modelo de gestão do risco de demanda atualmente está consolidado nas concessões da 5ª Etapa, como a da BR-040/GO/MG (Rota dos Cristais), assinada em fevereiro deste ano. Nesse contrato, a apuração da receita ocorre anualmente, ao longo de toda a vigência contratual. A receita acumulada da concessionária é comparada a faixas predefinidas (de referência, mínima e máxima). Se ficar abaixo do piso, a ANTT pode compensar a diferença, dentro dos limites contratuais. Se ultrapassar o teto, a concessionária deve devolver o excedente.

Tal modelo representa um avanço em relação ao modelo anterior da BR-153/GO/TO, dialogando com as transformações institucionais do setor ferroviário e com a busca por maior segurança jurídica e sustentabilidade econômico-financeira nas concessões. Ao reconhecer a natureza dinâmica da matriz logística brasileira, os contratos passam a refletir uma lógica de convivência modal, criando ambientes mais previsíveis para investidores e mais seguros para os usuários.

Essa evolução contratual está em sintonia com as tendências internacionais de integração entre modais e racionalização da infraestrutura de transportes. A convivência entre rodovias e ferrovias exige contratos mais inteligentes e responsivos, capazes de absorver choques e preservar o equilíbrio econômico-financeiro ao longo de décadas. A adoção combinada de mecanismos como contas vinculadas, faixas de receita e reprogramação de investimentos por gatilho de demanda sinaliza um novo patamar de maturidade na política de concessões de transporte no Brasil.

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Com isso, o setor público fortalece sua capacidade de estruturar concessões mais sensíveis ao ambiente concorrencial, enquanto o setor privado opera com maior previsibilidade diante de políticas públicas integradas de logística. A concorrência intermodal, antes tratada como evento excepcional, passa a ser prevista e mitigada desde a origem – como se espera de contratos verdadeiramente resilientes.

Vale ressaltar, por fim, que a adoção de mecanismos padronizados de compartilhamento do risco de demanda não exclui a possibilidade de soluções “ad hoc” em projetos com maior sensibilidade à concorrência intermodal. Em casos assim, as conclusões dos estudos de viabilidade podem justificar a alocação integral desse risco ao Poder Concedente, sobretudo quando os efeitos sobre a demanda forem intensos, localizados e mensuráveis.


[1]  ANTT. Autorizações Ferroviárias. Disponível em: <https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/ferrovias/autorizacoes-ferroviarias-1>. Acesso em: 10 abr. 2025.

[2]  DA SILVA, N. DE S. Como ficam as concessões rodoviárias com o “boom” das ferrovias? 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/356539/como-ficam-as-concessoes-rodoviarias-com-o-boom-das-ferrovias>. Acesso em: 10 abr. 2025.

[3]  3.3. Nos casos em que houver estudo ou licitação em andamento para substituição de contrato em vigor e não haja tempo hábil para que o vencedor do certame assuma o objeto do Contrato, o prazo de vigência poderá ser estendido, por no máximo 2 (dois) anos, nos termos da legislação, a fim de que não haja descontinuidade na prestação do serviço.

[4] 19.2. O Poder Concedente é responsável pelos seguintes riscos relacionados à Concessão, observando-se o disposto na subcláusula 20.5.4, (v): (…)19.2.5 implantação de novas rotas ou caminhos alternativos terrestres concorrentes, livres ou não de pagamento de tarifa, que não existiam e que não estavam previstos nos instrumentos oficiais de planejamento governamental na data da publicação do Edital, desde que demonstrado o desequilíbrio econômico-financeiro do Contrato.

[5] ZUQUIM, R. Compartilhar risco de demanda pode ser tendência em concessões, mas exigirá cuidados. Disponível em: <https://agenciainfra.com/blog/compartilhar-risco-de-demanda-pode-ser-tendencia-em-concessoes-mas-exigira-cuidados/>. Acesso em: 10 abr. 2025.

[6] Anexo 14 do Contrato da Ecovias Araguaia. Disponível em: <https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/rodovias/concessionarias/lista-de-concessoes/ecovias-araguaia>. Acesso em: 10 abr. 2025.

[7] AGÊNCIA INFRA. Quinta etapa de rodovias: mais compartilhamento de risco, regras mais claras de penalidades e menos variação tarifária. Brasília: Agência INFRA, 2023. Disponível em: <https://agenciainfra.com/>. Acesso em: 10 abr. 2025.

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