O setor global de aviação comercial vive um paradoxo significativo: enquanto se expande em termos de receita, demanda e inovação tecnológica, enfrenta um aumento exponencial no número de processos judiciais movidos por seus usuários, especialmente no Brasil. Esse fenômeno decorre de uma combinação complexa de fatores que evidenciam falhas estruturais do setor, assim como uma grande dificuldade, ou desinteresse, de corrigi-las extrajudicialmente.
Uma coisa é fato: o consumidor local se encontra insatisfeito com o serviço prestado pelas companhias aéreas, bem como com seus preços – e isso pode ser atestado através de um simples fato: o Brasil é, por uma longa margem, recordista mundial de processos judiciais contra companhias aéreas.
Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF
Os números da aviação no Brasil são fascinantes, mas apesar de figurar entre os dez maiores países no setor – com um mercado superior a 22 bilhões de dólares em receita em 2024, o que corresponde hoje a 3% do total global – parece que a insatisfação do consumidor para com este ramo está longe do fim.
Cerca de 98,5% das ações judiciais contra companhias aéreas em todo o mundo são registradas no Brasil, reflexo direto dessa conflituosa relação consumerista. Em pesquisa recente, a ABEAR aponta um aumento anual de cerca de 60% no número de processos contra companhias desde 2020. Nesse ponto, além de uma evidente sobrecarga no sistema judiciário, também se levantam preocupações sobre litigância predatória e concentração litigiosa, haja vista que, segundo o mesmo levantamento, 10% das ações mencionadas são movidas por apenas 20 advogados ou escritórios.
No entanto, o cerne da discussão reside não na possível litigância predatória, mas na falha sistemática das práticas de atendimento e nas políticas de compensação das companhias aéreas. A tendência de recorrer, de pronto, ao Judiciário, reflete não apenas a insatisfação dos consumidores, mas também a ineficiência dos mecanismos alternativos de resolução de conflitos oferecidos pelas empresas.
Em comparação com outros países de grande extensão territorial e populações significativas, o Brasil possui um mercado altamente concentrado, sendo dominado por apenas três grandes companhias: Latam, Gol e Azul. Esse oligopólio, que inclusive poderá vir a se tornar ainda menos diversificado se a fusão entre Gol e Azul de fato se concretizar, limita as opções dos passageiros e cria um ambiente de baixa concorrência, onde os consumidores frequentemente se veem sem alternativas frente aos preços e às falhas na prestação de serviços.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o mercado é altamente diversificado, com grandes companhias, operadoras regionais e de baixo custo, oferecendo mais alternativas de voos e preços acessíveis. Já na China, embora o setor seja dominado por três grandes companhias, veja-se: todas elas estatais, o mercado tem crescido, impulsionado por uma economia em expansão, controle de preços, investimentos em infraestrutura aeroportuária e aumento do poder aquisitivo, ampliando a demanda por viagens domésticas e internacionais.
Ainda no contexto comparativo global, outro aspecto relevante a ser considerado é a necessidade de uma regulação mais eficaz no setor aéreo. O contraste do cenário brasileiro com outros mercados é notável. Na Europa, por exemplo, o Regulamento CE 261/2004 estabelece direitos claros para passageiros em casos de atrasos e cancelamentos, incluindo compensações automáticas.
Medidas como essa reduzem significativamente a necessidade de judicialização, uma vez que os consumidores recebem reparações de forma ágil e sem a necessidade de intervenção estatal, visto que a resolução dos conflitos se dá diretamente entre as companhias aéreas e clientes.
No Brasil, por outro lado, a ausência de concorrência efetiva e a falta de políticas compensativas claras contribuem para a insatisfação generalizada. O setor carece de regulação robusta que proteja os direitos dos passageiros e garanta um equilíbrio mais justo na relação entre consumidores e empresas. A ANAC, embora responsável por regular o setor, enfrenta limitações na fiscalização e na aplicação de penalidades significativas às companhias que descumprem normas.
Inscreva-se no canal de notícias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões do país!
Desde 2019, o preço das passagens aéreas no Brasil tem apresentado variações significativas, influenciadas por diversos fatores econômicos e conjunturais. Em setembro de 2023, o valor médio das passagens domésticas atingiu R$ 747,66, o maior registrado desde o início da série histórica em 2009. Essa elevação está diretamente relacionada a componentes como a inflação, custos operacionais, dinâmicas de câmbio, oferta e demanda, bem como conflitos internacionais.
Ademais, o fim do despacho gratuito de bagagens em 2017, autorizado pela ANAC, jamais entregou ao consumidor o “barateamento” das passagens prometido. É nessa perspectiva que se pode afirmar, entre outras circunstâncias, que o mercado brasileiro de aviação se apresenta como um cenário prolífico para ajuizamento de ações por parte dos consumidores. Vejamos, portanto, entendimentos jurisprudenciais recentes derivados dessa convivência conflituosa.
A interpretação de grande parte dos tribunais, seja em 1ª ou 2ª instância, tem sido favorável à pretensão consumerista, principalmente por estarem de acordo com os entendimentos consolidados no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Em uma pesquisa simples, considerando apenas os últimos 12 meses, o TJSP registra mais de 5.000 acórdãos publicados relacionados a disputas envolvendo contratos aéreos consumeristas; o TJDFT, 1.000.
As decisões são lastreadas nos clássicos ressarcimentos de danos advindos de cancelamentos de voos/conexões[1] e bagagens extraviadas[2], assim como em temáticas mais complexas, como cláusulas abusivas de cancelamento automático e unilateral por parte das companhias aéreas em contratos[3], em casos como “no show”, e retenção indevida de valores quando da desistência voluntária do consumidor em tempo hábil nos casos de passagens com tarifas promocionais[4], resultando assim num enriquecimento ilícito das companhias aéreas.
Ora, os contratos firmados entre consumidores e companhias aéreas são tão abusivos que ignoram completamente a existência do art. 740 do Código Civil, que concede ao passageiro o direito de restituição do valor pago nos casos de cancelamento de passagem com tempo suficiente para ser renegociada.
Para melhorar a qualidade dos serviços aéreos no Brasil e reduzir a insatisfação dos passageiros, são necessárias mudanças estruturais e regulatórias. Uma das soluções adotadas pelo judiciário brasileiro foi a criação de juizados especiais em aeroportos, há mais de 15 anos, o que é uma medida obviamente positiva em prol daqueles que buscam algum tipo de ressarcimento ou solução, mas que de forma alguma resolveu a baixa qualidade da prestação do serviço ao consumidor (ou a diminuição do número de processos relacionados ao transporte aéreo no Brasil).
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
Outra medida importante é o fortalecimento da atuação da ANAC. A agência deve intensificar a fiscalização das práticas das companhias aéreas e aplicar multas mais severas para descumprimentos de normas. Além disso, a implementação de sistemas de compensação automatizada, similar ao modelo europeu, garantiria que passageiros afetados por atrasos ou cancelamentos recebessem indenizações sem necessidade de intervenção judicial.
No campo extrajudicial, a criação de câmaras de mediação e arbitragem pode oferecer uma alternativa eficiente para resolver conflitos. Essas câmaras, especializadas em transporte aéreo, poderiam reduzir o número de ações judiciais e promover acordos entre consumidores e empresas de forma mais rápida e econômica. Além disso, o fortalecimento dos Procons com núcleos especializados no setor aéreo ajudaria a atender às demandas dos consumidores de forma mais eficaz.
Outro ponto crucial é o incentivo à entrada de novas empresas no mercado brasileiro. Reduzir barreiras demasiadamente burocráticas e oferecer benefícios fiscais para empresas já consolidadas internacionalmente e startups do setor aéreo pode aumentar a concorrência e promover a inovação. Um mercado mais diversificado não apenas ampliaria as opções para os passageiros, mas também incentivaria as companhias estabelecidas a melhorar seus serviços.
Inscreva-se no canal de notícias tributárias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões!
A adoção de soluções judiciais e extrajudiciais, aliada a medidas estruturais, pode transformar a dinâmica do mercado aéreo no Brasil. Ao garantir que os direitos dos consumidores sejam respeitados e que as companhias sejam responsabilizadas por suas falhas, será possível restaurar a confiança no setor e oferecer aos passageiros uma experiência de viagem mais segura e satisfatória.
[1] TJDFT, Acórdão 1969614, Recurso Inominado Cível 0768907-29.2024.8.07.0016, Rel.: Juíza Marilia de Ávila e Silva Sampaio, DJe 24/02/2025. Nesse sentido: TJSP, Recurso Inominado Cível 1001891-06.2024.8.26.0323, Rel.: Juiz João José Custódio da Silveira, DJe 18/02/2025
[2] TJDFT, Acórdão 1967808, Recurso Inominado Cível 0734033-18.2024.8.07.0016, Rel.: Juiz Marco Antônio do Amaral, DJe 21/02/2025
[3] TJSP, Apelação Cível 1023009-96.2022.8.26.0003, Rel.: Juíza Michelle Fabiola Dittert Pupulim, DJe 12/02/2025
[4] TJDFT, Acórdão 1294069, Recurso Inominado Cível 0705833-40.2020.8.07.0016, Rel.: Juiz Gilmar Tadeu Soriano, DJe 05/11/2020