Chuvas, inundações e enchentes: como as novas normas de referência da ANA podem ajudar

No último dia 31 de março, em poucos minutos, Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, virou noite. Em menos de uma hora choveu mais do que a metade prevista para todo o mês — e ainda não faz um ano que fomos assolados pelas enchentes. 

Os serviços de drenagem e manejo de águas pluviais são indispensáveis para fazer frente a situações como esta. De acordo com a lei que rege o saneamento básico no Brasil (Lei 11.445/2007), com as alterações promovidas pela Lei 14.026/2020, o saneamento básico é o conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações operacionais de: (i) abastecimento de água; (ii) esgotamento sanitário; (iii) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, e (iv) drenagem e manejo de águas pluviais urbanas. Este último serviço é constituído “pelas atividades, pela infraestrutura e pelas instalações operacionais de drenagem de águas pluviais, transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas, contempladas a limpeza e a fiscalização preventiva das redes” (Art. 3º, I, “d”, da Lei 11.445/2007 com a redação dada pela Lei 14.026/2020).    

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A Lei 14.026/2020, usualmente denominada Novo Marco Legal do Saneamento Básico (NMLS), foi além e inseriu o Art. 3º-D na Lei 11.445/2007, que aprofunda a definição de serviços de manejo das águas pluviais urbanas como aqueles constituídos por  uma ou mais das seguintes atividades: (i) drenagem urbana; (ii) transporte de águas pluviais urbanas; (iii) detenção ou retenção de águas pluviais urbanas para amortecimento de vazões de cheias; e (iv) tratamento e disposição final de águas pluviais urbanas.  

Como se percebe, os serviços de drenagem pluvial não se confundem com os serviços de esgotamento sanitário, impondo-se não somente sua separação na definição jurídica, como especialmente nas soluções técnicas que cada uma destes serviços merecem receber.

Titularizados pelos municípios, tradicionalmente os serviços de drenagem e manejo de águas pluviais não costumam – ou não costumavam – ser delegados aos prestadores de serviços de abastecimento de água e de tratamento de esgoto.

Ocorre que o NMLS, muito embora evidencie as diferenças de cada um destes serviços de saneamento básico (de um lado, o esgotamento sanitário e, de outro, a drenagem e manejo de águas pluviais urbanas), impõe a necessidade de um relacionamento racional entre tais serviços.

Por exemplo, a lei dispõe que os serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos urbanos possam ser compostos da atividade de limpeza de dispositivos de drenagem de águas pluviais, de limpeza de córregos e outros serviços, o que evidencia a necessária sinergia entre todos os serviços. 

Essa relação comum dá voz a alguns princípios que regem os serviços públicos de saneamento básico, conforme o Art. 2º: integralidade e integração, que possuem a mesma raiz, mas significados diferentes, embora, no caso, complementares, passando a mensagem de racionalidade e maximização da eficácia das ações que devem ser aplicadas no setor.

A integralidade é “compreendida como o conjunto de atividades e componentes de cada um dos diversos serviços de saneamento que propicie à população o acesso a eles em conformidade com suas necessidades e maximize a eficácia das ações e dos resultados”. E a ideia de “integração das infraestruturas e dos serviços com a gestão eficiente dos recursos hídricos”.    

Diante desses imperativos legais e reclamados pelo próprio meio ambiente, a Agência Nacional de Águas (ANA) publicou a Norma de Referência 12, em 17 de março de 2025 (NR ANA 12/2025). Em suma, tal norma de referência destina-se a tratar dos aspectos a serem observados na elaboração de atos normativos e na tomada de decisões para a estruturação dos serviços públicos de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas (DMAPU), estabelecendo responsabilidades da entidade reguladora infranacional, do titular, do prestador e do usuário desses serviços (art. 1º). 

O art. 5º da NR 12/2025, por sua vez, direciona como objetivos dos serviços públicos de DMAPU, dentre outros, a minimização dos impactos da urbanização sobre o ciclo hidrológico e da poluição nos corpos hídricos, visa à segurança hídrica, à redução dos impactos sociais e econômicos associados aos riscos de enxurradas, alagamentos e inundações, proteção da vida, das propriedades e demais infraestruturas, assim como contribuir com estratégias de resiliência urbana atenta aos planos de mitigação e adaptação às mudanças do clima e planos de contingência. 

Diante disso, a NR ANA 12/2025 insere importantes conceitos debatidos em discussões sobre resiliência climática e ambiental como premissas normativas. Além de inserir a ideia de soluções baseadas na natureza, a NR ANA 12/2025 apresenta, no art. 2º, as definições para os interessantes conceitos de infraestrutura azul[1], infraestrutura cinza[2] e infraestrutura verde[3], os quais deverão ser considerados na concepção do sistema de DMAPU (art. 6º), no planejamento dos serviços (art. 8º), na operação e manutenção dos sistemas (art. 11), bem como nas responsabilidades e atribuições endereçadas ao titular do serviço (art. 23).

Aliás, em relação às atribuições do titular do serviço, o art. 23, I, da NR 12/2025 estabelece que, “no desenvolvimento de suas responsabilidades e atribuições”, ele deverá “conceder ou prestar diretamente o serviço de DMAPU”. 

Além da possibilidade delegação do serviço de DMAPU por meio de novos processos licitatórios, o art. 35 da NR 12/2025 corrobora a possibilidade de aditar os contratos vigentes de prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário para incluir a prestação dos serviços de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas, desde que seja (i) observada a interrelação existente entre os serviços de DMAPU e esgotamento sanitário; (ii) garantido o equilíbrio econômico-financeiro da concessão, mediante avaliação prévia da entidade reguladora competente e aplicação das medidas necessárias para sua manutenção, e (iii) formalizado em conformidade com os instrumentos normativos e regulatórios vigentes, assegurando transparência, publicidade e controle social sobre a prestação dos serviços.

Evidentemente, quando falamos em infraestruturas que compõem os serviços de saneamento básico, sobretudo aquelas voltadas à drenagem e manejo de águas pluviais urbanas, estamos tratando de intervenções que exigem investimentos vultosos, tanto na implantação quanto na operação e manutenção ao longo do tempo. 

Embora saibamos que o mais custoso é a inexistência de planejamento e execução dessas infraestruturas, é preciso atenção quanto à viabilidade técnico-operacional e à segurança jurídica da incorporação dos serviços de drenagem e manejo de águas pluviais urbanas aos contratos em vigor. 

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A NR ANA 12/2025 representa um passo importante para a consolidação de uma política pública integrada e sustentável de gestão das águas pluviais, ao articular princípios como integralidade, integração e sustentabilidade com diretrizes práticas e normativas. 

Nesse sentido, a possibilidade de aditamento contratual prevista no Art. 35, embora positiva ao reconhecer a interrelação entre os serviços de saneamento, impõe desafios relacionados à mensuração precisa de custos, à definição clara de responsabilidades e à necessidade de revisão das estruturas tarifárias. Há, ainda, a preocupação com eventuais assimetrias regulatórias entre entes federativos, o que pode gerar insegurança para os investimentos e comprometer o equilíbrio econômico-financeiro das concessões. 

Nesse cenário, é essencial que a implementação da norma se dê de forma gradual, coordenada e com ampla participação dos prestadores, garantindo previsibilidade, diálogo institucional e mecanismos claros de compensação e reequilíbrio sempre que necessário, para que seja possível um retorno amplo à sociedade em termos de resiliência climática, saúde e qualidade de vida.


[1] A infraestrutura azul é definida como o “conjunto de infraestruturas e instalações, naturais ou construídas, utilizadas para o manejo sustentável das águas pluviais e projetadas a partir da abordagem das soluções baseadas na natureza, incluindo cursos d’água, áreas úmidas, lagoas e lagos ou outros corpos d’água em áreas urbanas, constituindo elementos centrais de conexão com os espaços naturais contribuindo para a proteção da fauna e da flora, a reciclagem de nutrientes, a captura de poluentes, a melhoria da qualidade da água, o controle de inundações, a regulação do microclima, a promoção da biodiversidade, de bem-estar e a valorização da paisagem”.

[2] A infraestrutura cinza, por sua vez, como o “conjunto de infraestruturas e instalações operacionais de DMAPU, que têm como objetivo a redução de alagamentos, inundações e enxurradas urbanas, projetadas e construídas a partir da abordagem técnica convencional, que se fundamenta na rápida transferência do escoamento superficial excedente para jusante”.

[3] A infraestrutura verde é o “conjunto de infraestruturas e instalações operacionais de DMAPU, preferencialmente interconectadas aos sistemas naturais, espaços livres e outros elementos da paisagem, construídas a partir da abordagem das soluções baseadas na natureza, que têm como objetivos, além da redução de alagamentos, inundações e enxurradas urbanas, proporcionar múltiplas funções, como a melhoria da qualidade da água, a regulação do microclima, o aumento da biodiversidade, a promoção do bem-estar e a valorização da paisagem”.

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