O presente artigo pretende trazer a instigante reflexão que Anne Case e Angus Deaton – a primeira professora da Universidade de Princeton e o último Prêmio Nobel de Economia de 2015 – propõem em um livro que já se tornou um grande bestseller: Deaths of Despair and the Future of Capitalism1.
O objetivo do livro é mostrar que as chamadas mortes por desespero – assim consideradas aquelas que decorrem de suicídio, overdose e alcoolismo – estão aumentando dramaticamente nos Estados Unidos entre a população branca – sobretudo masculina – em decorrência de uma série de forças sociais e econômicas que estão tornando a vida cada vez mais dura para as classes trabalhadoras, sobretudo para os indivíduos que não têm um diploma de graduação (bachelor’s degree).
Enquanto os trabalhadores “educados” estão ascendendo, os adultos que não têm um diploma estão cada vez mais morrendo de dor e desespero, a ponto de tal circunstância ter atenuado até mesmo as desigualdades raciais. Assim, um homem negro com diploma teria hoje menos chances de morrer por desespero do que um homem branco sem diploma.
Boa parte do livro é dedicada a entender o que explicaria isso, missão para a qual os autores procuram afastar algumas das conhecidas supostas causas do problema, tais como a crescente prescrição de opióides, o aumento da obesidade, bem como os problemas de pobreza e desigualdade.
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Aliás, especialmente no que diz respeito aos dois últimos fatores, os autores mostram que não conseguiram encontrar correlações consistentes, uma vez que os padrões de desigualdade e pobreza não são compatíveis com os padrões de mortalidade. Como exemplo, tem-se que os estados da Califórnia e Nova York, conhecidos pelos maiores índices de desigualdade no país, apresentam as menores taxas de mortalidade.
Daí por que, aprofundando as possíveis causas das mortes por desespero, os autores chegaram na questão do emprego. A sua conclusão é a de que precisamente nos lugares em que há menor fração da força de trabalho – composta por pessoas com idade e disposição para trabalhar – empregada são precisamente aqueles com as maiores taxas de mortes por desespero.
Nesse sentido, os autores refutam o argumento conservador que procura culpar os desempregados ou os alocados em maus empregos pelo problema profissional, assim como procura associar suicídios e consumo exagerado de álcool e drogas às fraquezas pessoais.
Para os autores, a verdadeira causa está em uma longa estagnação econômica e a forma como a própria nação está respondendo a isso. Segundo eles, entre os homens sem diploma, os salários médios não apenas estagnaram, como declinaram desde 1979. Além de tudo, esse grupo populacional enfrenta diversos problemas no mercado de trabalho, como deterioração dos pagamentos, horas mais incertas, duração mais curta do trabalho e uma série de consequências dos contratos temporários tão comuns à chamada gig economy, que acabam privando os trabalhadores de benefícios essenciais para o seu bem estar, como o seguro-saúde.
Há, portanto, uma série de questões estruturais que levam a esse cenário, notadamente o enfraquecimento crescente da posição do trabalho – especialmente do trabalho menos qualificado – diante do progressivo aumento poder das corporações, a que se juntam outros fatores, como um setor de saúde que redistribui salários dos trabalhadores para os mais ricos.
As consequências nefastas desse fenômeno são de amplas proporções, até porque se projetam sobre um grupo populacional bastante expressivo, uma vez que a população branca em idade de trabalho – de 25 a 64 anos – sem diploma corresponde a 38% da população americana. São essas pessoas que viram o seu poder de compra decair dramaticamente, assim como vêm vivenciando uma realidade em que são cada vez menos valorizados.
Tal circunstância tem impactos em todos os aspectos da vida da pessoa, afetando diretamente a sua qualidade. Dentre os exemplos, encontra-se o de que, enquanto 75% das pessoas com diploma são casadas na faixa dos 45 anos, apenas 60% das pessoas sem diploma são casadas na mesma faixa etária, apontando os autores que é cada vez mais difícil que alguém sem diploma case com alguém com diploma.
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Daí por que o cenário resulta de uma série de fatores objetivos – má remuneração, dificuldades de acesso a bons empregos, perdas de oportunidades – mas também uma série de fatores subjetivos, como maior insegurança, privação, falta de esperança, perda do sentimento de pertencimento e falta de reconhecimento social.
É essa mistura de causas que desperta emoções negativas que, como solidão, ansiedade, infelicidade e stress, leva os indivíduos a dores físicas e psicológicas cada vez maiores, o que, por sua vez, são causas das mortes por desespero, na medida em que funcionam como importantes gatilhos para opióides, álcool e suicídio. Não é sem razão que pesquisam mostram que, ao longo das últimas três décadas, americanos brancos de meia idade reportam mais dor do que o mesmo perfil em outros 30 países ricos.
É nesse contexto que os autores propõem importantes ajustes ao atual capitalismo, deixando claro, desde o prefácio, que não é a sua intenção acabar com o regime de mercado, mas simplesmente aperfeiçoá-lo:
“We believe in capitalism, and we continue to believe that globalization and technical change can be managed to general benefit. Capitalism does not have to work as it does in America today. It does not need to be abolished, but it should be redirected to work in the public interest. Free market competition can do many things, but there are also many areas where it cannot work well, including in the provision of healthcare, the exorbitant cost of which is doing immense harm to the health and wellbeing of America.”
Obviamente que o trabalho dos autores apresentou a difícil tarefa de conectar pontos em assuntos complexos, buscando causalidades que, como se sabe, são sempre difíceis de se estabelecer em assuntos sociais multifacetados e dinâmicos. Isso ajuda a entender as inúmeras críticas que foram dirigidas ao estudo, seja no que diz respeito à atualidade dos dados2, seja no que diz respeito à possibilidade de que tais conclusões possam ser estendidas a outros países3, dentre inúmeras outras.
Entretanto, é fundamental que o tema trazido pelos autores possa ser objeto da devida reflexão, uma vez que, como ficou claro na citação apresentada no início do texto, muitas das vicissitudes do atual regime capitalista podem representar prejuízos que devem ser contabilizados não apenas em dinheiro, mas também em vidas perdidas.
Acresce que, como já se teve oportunidade de mencionar em diversas oportunidades, esse sentimento de desilusão e de ser deixado para trás tem outras consequências importantes no plano social e político. Na verdade, muito da frustração com o sistema econômico tem sido direcionada para a eleição de governos autoritários que, apesar de populistas, não só não resolverão o problema, como tenderão a agravá-lo.
É fundamental, portanto, que possamos pensar nos resultados do regime capitalista igualmente a partir do bem estar das pessoas e da sua qualidade de vida, levando muito a sério os argumentos de Case e Deaton no sentido de que as mortes por desespero podem, sim, ser mais um efeito de um sistema tão injusto.
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1 Princeton University Press, 2020.
2 https://www.economist.com/united-states/2023/12/23/the-deaths-of-despair-narrative-is-out-of-date
3 https://www.slowboring.com/p/the-deaths-of-despair-narrative-is