A reforma tributária introduzida pela EC 132/2023 promoveu, como destacam os especialistas, verdadeira “revolução” no sistema de tributação do consumo, especialmente em relação aos tributos até então atribuídos aos entes subnacionais, Estados, Distrito Federal e Municípios.
No lugar de tributos próprios, atribuídos a um determinado ente e instituído por lei local, a EC 132 “unificou”[1] a tributação do consumo e determinou a substituição do ICMS e do ISS por um novo imposto, o IBS, de “competência compartilhada” entre Estados, DF e Municípios, instituído por lei complementar federal, exatamente a mesma lei que deverá instituir a CBS, irmã gêmea do IBS.
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Trata-se, à toda evidência, de algo não simplesmente inédito mas verdadeiramente revolucionário porque transcende e altera as estruturas do sistema de tributação do consumo introduzindo um novo paradigma, sobretudo no que diz respeito à instituição do tributo e à relação entre credor e devedor, decisivamente incompatível com o modelo até aqui vigente.
Como ressalta com enorme perspicácia Luciana Vieira, “estamos diante não de uma reforma, mas de uma verdadeira revolução” pois “o que iremos presenciar com a reforma tributária do consumo no âmbito do contencioso judicial é uma mudança completa de paradigma. Tentar manter tudo funcionando como o sistema judicial tributário atual gerará um caos absoluto.”[2]
Diante desse cenário dramaticamente desafiador os autores tem buscado construir soluções e modelos paradigmáticos novos em torno da definição do sujeito ativo do IBS e das correspondentes atividades de fiscalização e lançamento do imposto, além da disciplina do contencioso judicial do IBS, buscando definir a Justiça Competente e harmonizar a atuação das Procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na representação judicial do Comitê Gestor do IBS.
Diversas propostas tem sido formuladas, desde alterações na redação de dispositivos legais ainda em construção, caso do PLP 108, que disciplina a atuação do Comitê Gestor do IBS, até a apresentação de nova PEC que prevê a criação de “uma Justiça Tributária Nacional 4.0, para lidar com a nova realidade da reforma tributária”[3], remodelando a competência territorial para processar e julgar as ações que veiculam questionamento em torno da incidência da CBS e IBS.
De fato, é inegável que a nova realidade instituída pelas alterações na tributação do consumo demanda também alteração na estrutura judiciária em linha com a revolução paradigmática representada por esse novo modelo e pelos novos tributos incidentes sobre o consumo.
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E, como destaca Luciana Vieira, “Não há, no entanto, nenhuma regra na EC 132/2023 que tenha mudado o capítulo das competências do Judiciário. E esse vácuo legislativo se deve à complexidade da mudança empreendida, que alterou aspectos estruturantes do sistema.”(…). “Se não houver nenhuma alteração constitucional e legal antes da entrada em vigor dos novos tributos, o cenário do contencioso judicial será caótico, sem dúvida.”[4]
Conquanto urgente e necessária a reforma constitucional da estrutura do sistema judicial para exame das demandas envolvendo CBS e IBS, é preciso destacar de modo altissonante que essa alteração não dispensa mudanças, ou aperfeiçoamentos, na legislação infraconstitucional que institui esses tributos.
As propostas que vem sendo cogitadas parecem, com a devida vênia, não sopesar adequadamente premissas constitucionais e conceitos gerais do direito tributário não alterados, e sequer abalados, pela mudança – revolução – na tributação do consumo.
Como reiteradamente destacado, embora tenha introduzido uma mudança profunda, revolucionária, do modelo de tributação do consumo a EC 132/2023 não alterou o que se pode chamar de “estrutura geral” do Subsistema Constitucional Tributário.
Ao reverso, a EC 132/2023, reforça a estrutura do sistema ao introduzir “novos” (em verdade, a reforma “explicita” princípios já implícitos no sistema) princípios constitucionais, quais sejam, justiça tributária, simplicidade, transparência, cooperação e defesa do meio ambiente (CF, art. 145, § 3º).[5]
Permanece, portanto, inalterado o modelo de “atribuição constitucional” de competência com a consequente reserva à lei infraconstitucional da missão de “instituição do tributo”, definindo todos os elementos que, na prática, irão compor a obrigação tributária, em especial, o que aqui nos interessa, qual seja, o sujeito ativo do IBS[6].
Mesmo antes da edição da Lei Complementar no. 214/2025, que trata da instituição da CBS e do IBS, a doutrina buscava definir qual ente, se o Comitê Gestor ou os entes subnacionais, diretamente, deveria ostentar a condição de sujeito ativo do IBS. E, desde então, predominava o entendimento de que, na verdade, os sujeitos ativos do IBS são – serão – os Estados, Distrito Federal e Municípios.[7]
Os autores identificam no perfil do novo imposto o que tem sido designado como “bimembridade” da condição de sujeito ativo do IBS[8], resultado de uma dupla relação jurídica obrigacional tributária que dará origem a, de um lado, IBS-estadual e, de outro lado, IBS-municipal. Como destaca Danilo Monteiro de Castro, “o mesmo fato tributável, quando vertido em linguagem competente no antecedente de duas distintas normas individuais e concretas, desencadeará (implicação) relações jurídico-tributárias diversas, uma com um estado a figurar como sujeito ativo (IBS-estadual) e, a outra, com um município (IBS-municipal)”[9].
De fato, não se pode ignorar que o valor do IBS será determinado pela soma das alíquotas “estadual e municipal”. Sem embargo, não parece correto afirmar que a ocorrência do fato gerador descrito na Lei Complementar 214/2025 dará origem a duas relações jurídico tributárias tendo por objeto o mesmo imposto, qual seja, o IBS. Há sim duplicidade de obrigações tributárias resultantes do mesmo fato gerador – fato gerador “in concreto” – mas constituídas por dois tributos distintos: CBS, de um lado, e IBS, de outro lado. Não há, porém, “dualidade” de obrigações constituídas pelo mesmo imposto, IBS, parecendo despropositado, sob o aspecto da relação obrigacional instalada em relação ao sujeito passivo, falar-se em IBS-estadual x IBS-municipal.
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De todo modo, para manter fidelidade com a linha interpretativa defendida até aqui, é preciso insistir que apenas se poderá afirmar a condição de “sujeito ativo”, qualquer que seja o titular, vale dizer, o Comitê Gestor do IBS ou os Estados, Distrito Federal e Municípios, caso expressamente prevista na lei instituidora desse imposto, qual seja, na Lei Complementar no. 214/2025. Vale dizer, estando o Sistema informado pelo princípio da legalidade, é necessário admitir que não se pode cogitar de um “sujeito ativo” da obrigação tributária sem previsão expressa na lei que institui o tributo.
E, pasmem, a Lei Complementar 214/2025, que institui IBS e CBS, simplesmente não disciplina, vale dizer, não prevê quem é o “sujeito ativo” do tributo, ou seja, não indica qual o ente que figurará como credor da obrigação tributária instalada com a realização do fato gerador do imposto.
Há, portanto, uma “lacuna” – um “vazio” legislativo, como destaca Luciana Vieira – ou uma omissão normativa que antecede a disciplina e eventuais problemas que possam ser resolvidos por meio de aperfeiçoamento da disciplina legislativa da atuação do Comitê Gestor objeto do PLP 108/2024.
É preciso insistir na afirmação de que, qualquer que seja a construção normativa em torno da compatibilização da atuação do Comitê Gestor com o exercício de atividades de cobrança, administrativa e judicial, pelos Estados, DF e Municípios, somente será válida se apoiada em previsão legal expressa, na lei instituidora do imposto, que defina previamente o sujeito ativo da obrigação tributária do IBS.
Enfim, há uma questão prévia, fundamental, que deverá ser solucionada preliminarmente, antes de qualquer discussão de caráter teórico em torno da definição do sujeito ativo do IBS. Ou seja, embora pareça evidente, é necessário afirmar que não terá resultado prático a disputa teórica que contraponha a defesa da titularidade do polo ativo da obrigação tributária composto pelos entes-subnacionais diretamente, Estados, Distrito Federal e Municípios ao entendimento contrário de que essa condição deverá ser reservada ao Comitê Gestor do IBS.
Na verdade, caberá a “lei formal”, no caso, à Lei Complementar no. 214/2025 definir expressamente a qual ente – ou pessoa – será atribuída a condição de sujeito ativo do IBS.
Sem previsão legal expressa, como aqui insistentemente destacado, é absolutamente estéril a discussão e não poderá ser validamente sustentada a defesa da condição de sujeito ativo do imposto a esse ou aquele ente.
É certo que ignorar a revolução promovida pela Reforma e tentar adaptar o novo a conceitos e premissas ultrapassados pode instalar, é importante aqui repetir o alerta de Luciana Vieira, verdadeiro caos na cobrança e na discussão judicial do IBS.
Todavia, é preciso ter em mente que a Reforma, embora revolucionária na introdução de um novo modelo de tributação do consumo, não pode prescindir das premissas e conceitos estruturantes do sistema constitucional tributário, que visam garantir, ao mesmo tempo, eficiência na cobrança e segurança jurídica para o devedor do tributo.
Por isso, enfim, é preciso buscar soluções que assegurem a implementação do novo modelo em harmonia com os fundamentos do Sistema Tributário Nacional, promovendo-se alterações pontuais na Constituição Federal e na lei que institui o IBS de modo a assegurar a validade, higidez e previsibilidade das relações entre fisco e contribuinte e, do mesmo modo, entre Estados, Distrito Federal e Municípios no exercício da competência compartilhada do tributo.
[1] Na verdade, a Reforma buscou preservar a competência dos Estados e Municípios para tributar o consumo e, em razão disso, abandonando o modelo projetado inicialmente de tributação verdadeiramente “unificada”, federal, instituiu o chamado “IVA dual”, atribuindo um imposto sobre o consumo – o IBS – também aos entes subnacionais mas por meio de uma ainda não definitivamente compreendida “competência compartilhada”.
[2] OLIVEIRA, Luciana Marques Vieira da Silva. “Contencioso judicial pós-reforma (ou revolução) tributária”. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/contencioso-judicial-pos-reforma-ou-revolucao-tributaria. Acesso em 13.02.2025
[3] OLIVEIRA, Luciana Marques Vieira da Silva. Op. cit.
[4] OLIVEIRA, Luciana Marques Vieira da Silva. Op. Cit.
[5] Para Humberto Ávila, “O Sistema Tributário Brasileiro é caracterizado pela sua abertura e rigidez. Abertura, porque outras limitações, que decorrem do sistema ou dos princípios adotados pela Constituição Federal, especialmente dos princípios fundamentais (arts. 1o a 5o) e dos direitos fundamentais e das garantias (arts. 5o a 17), são expressamente incorporadas ao Sistema Tributário Nacional (art. 150 e § 2o do artigo 5o). Rigidez, primeiro porque as regras de competência dos impostos e as regras de repartição das receitas tributárias são detalhadamente previstas prela própria Constituição Federal (arts. 153 a 156). Segundo, porque os princípios fundamentais e as garantias não podem ser alterados por meio de emenda constitucional (§ 4o do artigo 60). E, terceiro, a 17), porque a Constituição Federal contém dispositivos relativos à definição de impostos, taxas, contribuições e empréstimos compulsórios (arts. 145, 149 e 195).” (…) “… a Constituição Federal Brasileira apresenta não apenas o conceito de cada espécie tributária, mas também a previsão das hipóteses de incidência e dos elementos essenciais de cada uma das espécies tributárias” (“Sistema Constitucional Tributário”. 2. Ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 541-2).
[6] Como se sabe, a condição incontornável para a validade da instituição do tributo é a edição de lei descrevendo todos os elementos da hipótese de incidência, a chamada regra matriz de incidência do tributo. Como assevera ROQUE CARRAZZA, “competência tributária é a possibilidade de criar, in abstrato, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas; como corolário disso, exercitar a competência tributária é dar nascimento a tributos, no plano abstrato (ou seja, no plano legal ou legislativo)”
[7] Reafirmadas pela Reforma Tributária essas que são premissas estruturantes do nosso Sistema Constitucional Tributário, corolários da rigidez e abertura do Sistema, que manifestam a força dos sobreprincípios da justiça e da segurança jurídica, não nos parece correto, com a devida vênia, falar em capacidade tributária ativa de “status constitucional” ou, ainda, afirmar-se, em tom peremptório, que o Comitê Gestor tem atribuição simplesmente de coordenar a atuação dos entes subnacionais no lançamento e cobrança do IBS e, em razão dessa natureza, jamais poderá ostentar a condição de sujeito da relação jurídico-tributário, ou seja, de sujeito ativo da obrigação tributária, “quiçá da relação processual, como legitimado extraordinário”. CASTRO, Danilo Monteiro de. “Quem terá legitimidade processual para executar o IBS”. In https://www.conjur.com.br/2024-jun-23/quem-tera-legitimidade-processual-para-executar-o-ibs/#_ftn4 (acesso em 12/02/2025)
[8] CONRADO, Paulo Cesar. “IBS, cálculo de relações e desdobramentos processuais”. https://www.conjur.com.br/2023-dez-24/ibs-calculo-de-relacoes-e-desdobramentos-processuais/. Acesso em 13/02/2025
[9] CASTRO, Danilo Monteiro de. “Quem terá legitimidade processual para executar o IBS”. In https://www.conjur.com.br/2024-jun-23/quem-tera-legitimidade-processual-para-executar-o-ibs/#_ftn4 (acesso em 12/02/2025)