Gilmar Mendes: professores e alunos de Constitucional discutem um Brasil em construção

Após 36 anos da promulgação da Constituição, os professores e alunos de Direitos Constitucional parecem ter se libertado de uma interpretação ideológica que circundava a Constituição. “Não há tanta ilusão em relação às utopias como nós tínhamos no passado”, avalia Gilmar Mendes, professor da disciplina no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em entrevista exclusiva ao JOTA.

“Talvez na Justiça do Trabalho tenha um pouco desses personagens que ainda acreditam que ele pode transformar o Uber em celetista e que a CLT é o melhor diploma do mundo. Mas, fora daí, eu tenho a impressão que professores e alunos se libertaram de um viés muito ideologizante”, acrescenta. 

Mendes também considera que, hoje em dia, os alunos estão mais atentos aos debates que ocorrem na sociedade e que há uma maior discussão centralizada no papel do STF. Isso se difere, por exemplo, ao que acontecia no passado, em que a cobrança que havia sobre o Tribunal era de sua “excessiva inércia”. Agora, em sua avaliação, se cobra da Corte o seu excesso de “participação”. 

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Diante da importância que o Supremo tem ganhado nos últimos anos, o ministro pondera que os alunos de Direito Constitucional também têm prestado mais atenção nas indicações dos presidentes da República às vagas de ministros do STF — o que, em sua perspectiva, não acontecia no passado. “A gente vê que os alunos perguntam sobre isso, sobre o ativismo, sobre o que se deve fazer, por que o tribunal tem este, aquele papel e aí, obviamente, listam decisões que foram erradas ou que poderiam ter sido diferentes”, analisa. 

Além disso, na visão do ministro, há também uma discussão efervescente sobre o papel do STF na separação dos Poderes. Em geral, a avaliação entre os alunos sobre o tribunal não é necessariamente negativa, pois eles percebem que, se há disfuncionalidades, talvez o tribunal ajude a reduzi-las ou minimizá-las. Para Mendes, é muito interessante que exista esse debate e que os alunos façam parte, visto que a sala de aula hoje em dia discute um Brasil que ainda está sendo feito. 

“E isso é perguntado pelos alunos. A questão do aborto não é do Legislativo? Não deveria ser o Legislativo a decidir sobre este ou aquele tema? E as opiniões são divididas, a propósito, até porque, em muitos casos, o tribunal só atuou na omissão a partir de um lapso de tempo razoável de não disciplina ou de não regulação”, destacou Mendes. 

O ministro e professor Gilmar Mendes é o último entrevistado da série do JOTA sobre os desafios de ensinar Direito Constitucional no Brasil atual.

A série explorou com professores renomados como é o ensino e a formação dos futuros operadores do Direito, em um cenário onde a Constituição é não apenas um texto jurídico, mas também um campo de inúmeras disputas sociais.

Leia abaixo trechos da entrevista com Gilmar Mendes, ministro do STF e professor de Direito Constitucional do IDP. A íntegra está disponível no YouTube do JOTA. Inscreva-se no canal para acompanhar todas as doze entrevistas da série.

Professor Gilmar Mendes, nas circunstâncias que nós temos hoje no Brasil, de disputa em torno da Constituição, de polarização sobre a interpretação da Constituição, quais desafios o senhor vê dentro da sala de aula para se ensinar Direito Constitucional para essa geração que está vivendo e convivendo com essa disputa que hoje permeia toda a nossa sociedade? 

Acho que, em um primeiro momento, a gente deve recordar o contexto da promulgação da Constituição de 1988, que marca a ruptura com aquilo que se chamava o entulho autoritário da Constituição de 1967, 1969, com os atos institucionais. E obviamente que o grande desafio que se colocava era como interpretar essa Constituição, quais métodos nós deveríamos adotar nesse sentido. E houve disputas que hoje estão totalmente apagadas, por exemplo, sobre a grande revolução que foi adotar no texto constitucional o controle da omissão inconstitucional, a ação direta por omissão e o mandado de injunção. 

Outro ponto que eu acho importante ressaltar é a formação do Supremo Tribunal Federal à época. A Constituição de 1988 surpreende o Supremo Tribunal Federal com uma formação que vinha ainda do regime militar. Depois é que começam a vir as outras indicações, ainda temos indicações do governo Sarney e assim sucessivamente. E, claro, essas disputas todas vão ter momentos interessantes, por exemplo, para ficarmos em fatos também remotos, o debate sobre o plebiscito ou referendo na questão dos cinco anos na revisão constitucional. Parlamentarismo ou presidencialismo, República ou Monarquia. 

Também aqui houve divisão entre os constitucionalistas e, claro, essa divisão se projetava em sala de aula. Considerando que foram vencidos o parlamentarismo e a monarquia, o professor Bonavides, por exemplo, considerava que não era possível haver revisão constitucional. Naquele momento havia um sentimento de sacralização daquilo que foi colocado no texto constitucional. Se a gente olhar hoje, a revisão constitucional da qual eu participei, na condição de assessor do relator-geral, que era o ministro Nelson Jobim, ela serviu de brainstorming para a caminhada que se faz no governo seguinte, de Fernando Henrique Cardoso, em relação à privatização e todas essas questões que se fizeram. 

Então, nós tivemos vários rachas em torno desse tema. Depois veio todo o debate sobre as privatizações, várias impugnações. Recentemente, até, tivemos as disputas corporativas, que eram muito radicalizadas. Por exemplo, o tal regime único que foi estabelecido na Constituição de 1988 e que a oposição trouxe ao Supremo Tribunal Federal, que lhe deu uma liminar para dizer que, tecnicamente, o texto constitucional não tinha sido modificado de maneira legítima, lícita e, recentemente, como essa liminar ficou em vigor por muito tempo, o Supremo mudou de posição, entendendo que, de fato, o que se fizera naquele processo de reforma era constitucional.

Os professores tiveram que ir adaptando o pensamento e as aulas, não é, ministro?

Isso, com certeza. Aqueles que tinham posições fortemente socializantes foram vendo que se impunha uma nova visão, e que era necessário, senão por motivos de racionalização, talvez por um tipo de pensamento de necessidade. O modelo, por exemplo, estatizante, não dera certo. Nós não tínhamos recursos para resolver, por exemplo, questões como telecomunicação. Se hoje se fala nessa riqueza da internet e dos celulares, tem a ver com o processo de privatização, investimento estrangeiro.

Em suma, muitos passos foram dados nesse sentido, e acho que os alunos também foram passando por um processo de atualização. É claro que esse flerte ideológico sempre havia e vinham perguntas a propósito, sobretudo, do papel do Supremo Tribunal Federal: por que ele fez isto ou por que ele não fez? Muitas mudanças vieram na legislação, eu mesmo trabalhei no anteprojeto da Lei 9.868/1999, que baliza a ADI, ADC, ADO ou depois a ADPF, que vai dar robustez ao modelo de controle de constitucionalidade. E isso também vai transformar o Supremo. 

De alguma forma, vai lhe dar um instrumentário muito rico para ser, inclusive, um novo Supremo. Se a gente for olhar em relação àquele que nós víamos na transição de 1988-1989, algumas questões, à época, não foram discutidas, e por isso também não se encerraram. Por exemplo, essa questão da anistia recíproca. Se de novo estamos vivendo um revival com a questão dos militares, e que é um tema muito sensível, inclusive ajudado agora por esse filme, o Ainda Estou Aqui, muita gente está discutindo essa questão. À época, isso constou da Emenda Constitucional 26/1985, se não me engano, que fazia a convocatória da Constituição.

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