Momento da ocorrência do fato gerador do IBS/CBS

No Brasil e no mundo, os tributos são, em regra, apurados pelo chamado regime de competência, embora a legislação possa, em casos específicos, admitir a apuração pelo regime de caixa. Essa predominância se justifica por diversas razões, sendo a mais relevante a distinção entre a situação econômica do contribuinte e sua posição meramente financeira.

Em outras palavras, trata-se da diferença entre a necessidade de registrar uma mutação patrimonial e a mera entrada de caixa, que, isoladamente, pode não traduzir capacidade contributiva. Numa frase direta: a existência ou inexistência de caixa por si só não é um parâmetro confiável para mensurar a situação econômica do contribuinte. Isso se reflete no modo como a contabilidade, de forma mandatória, impõe o registro das transações, salvo exceções específicas.

Um exemplo simples pode ajudar na compreensão. Suponha uma empresa que compra à vista e vende a prazo. Ela adquire mercadorias por R$ 100 e as revende por R$ 200, a serem recebidos em 60 dias. Se a contabilidade fosse feita apenas com base no caixa, no primeiro mês haveria o registro de uma despesa (custo, em sentido rigoroso) de R$ 100 sem a correspondente receita. Isso distorceria o resultado da empresa.

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A contabilidade, então, adota o regime de competência, baseado na ideia de que o registro das transações deve ocorrer no momento em que produzem efeitos econômicos relevantes — com o reconhecimento de receitas e despesas no período em que são incorridas, e não necessariamente quando há entrada ou saída de caixa. Assim, ainda que os R$ 200 não tenham sido recebidos, o valor já deve ser evidenciado, pois a empresa adquiriu o direito de receber essa quantia pela venda realizada.

Claro que o controle do caixa é igualmente essencial. Como se diz em finanças, o caixa é soberano. Para isso, a contabilidade utiliza o Demonstrativo de Fluxo de Caixa (DFC), enquanto o resultado econômico, apurado pelo regime de competência, é apresentado no Demonstrativo de Resultado do Exercício (DRE).

Por essa lógica, se uma empresa ainda não realizou uma venda, mas recebeu previamente valores de um cliente, não poderá reconhecer tal valor como receita. Isso porque, sem a concretização da venda, não há o nascimento de um direito ao recebimento — há apenas uma antecipação financeira por parte do cliente. A prova disso é que, se a mercadoria não for entregue, por qualquer razão, inclusive o desfazimento do negócio, o valor deverá ser devolvido.

Assim, uma empresa pode ter caixa sem receita (adiantamento de cliente) e pode ter receita sem caixa (venda a prazo). O nascimento de um direito ou de uma obrigação independe do impacto imediato no caixa.

Isso tudo impacta a forma de apuração dos tributos. O ICMS e o ISS, por exemplo, na generalidade dos estados e dos municípios, são apurados pelo regime de competência, de tal modo que, realizado o fato gerador por parte dos contribuintes, estes devem evidenciar em sua contabilidade o nascimento de um direito ao recebimento do preço praticado, independentemente de terem recebido o pagamento decorrente daquela operação.

Naturalmente, isso gera uma pressão sobre o fluxo de caixa das empresas, pelo que empresas de pequeno porte podem ser autorizadas a diferir o pagamento do imposto para o momento do recebimento efetivo do preço (como acontece com as empresas submetidas ao Simples Nacional ou que optam pelo lucro presumido). Por outro lado, qualquer recebimento de caixa por contribuinte, sem a correspondente realização do fato gerador, não pode ensejar o reconhecimento de obrigação tributária.

Toda essa construção parece não ter sido observada pela nova Lei Complementar 214/24 (LC 214/24), que institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados e municípios, e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União.

Como se sabe, a Constituição Federal foi alterada pela Emenda Constitucional 132/23 para autorizar a instituição desses novos tributos sobre a realização de operações com bens e serviços, sendo essa a parcela de competência que deve ser seguida pelo legislador complementar.

Se é assim, acerta a LC 214/24 quando, em seu artigo 10, tratando do critério temporal da hipótese de incidência dos novos tributos, afirma que “considera-se ocorrido o fato gerador do IBS e da CBS no momento do fornecimento nas operações com bens ou com serviços, ainda que de execução continuada ou fracionada”.

Ora, se o critério material da hipótese de incidência dos novos tributos é a realização de operações com bens e serviços, a fixação do critério temporal no momento em que há o fornecimento dos respectivos bens e serviços parece correta e compatível com a ideia de que, nesse iter (especificado pelo artigo 3º, II, da LC 214/24), há o nascimento de um direito por parte do fornecedor. A nova lei neste ponto claramente adota a ideia de que IBS e CBS devem ser apurados pelo regime de competência, e não pelo regime de caixa.

Posta a questão nesses termos, fica claro que meras antecipações realizadas por clientes, sem que o fato gerador tenha sido realizado (leia-se: sem que tenha havido fornecimento de bens ou serviços), não podem, de modo algum, ensejar o pagamento de tributo.

Isso, no entanto, não foi observado pela LC 214/24 quando, em seu artigo 10, § 4º, autoriza a exigência de “antecipações de tributos” nas hipóteses em que “ocorra pagamento, integral ou parcial, antes do fornecimento”. O dispositivo é uma confissão de que a nova LC 214/24 está exigindo o pagamento de tributo sem que tenha ocorrido o respectivo fato gerador (o fornecimento), simplesmente porque se constatou um pagamento.

Como ficou claro, a transferência de dinheiro não é — e não pode ser — fato gerador do IBS ou da CBS. Isso decorre tanto da leitura da Constituição Federal quanto da própria LC 214/24. Se houvesse a possibilidade de cobrança de IBS e CBS sobre meras transferências de dinheiro ou adiantamentos de clientes, esses tributos deixariam de incidir sobre operações com bens e serviços e passariam a incidir sobre transações financeiras — o que é juridicamente inadmissível.

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Pagamentos realizados por clientes antes do efetivo fornecimento – seja em vista (i) da entrega ou disponibilização de bens materiais; (ii) da instituição, transferência, cessão, concessão, licenciamento ou disponibilização de bem imaterial, inclusive direito; ou (iii) da prestação ou disponibilização de serviço – não podem ser enquadrados como fatos geradores de IBS e CBS, mas como meros adiantamentos de clientes.

Apenas com o efetivo fornecimento é que IBS e CBS devem ser reconhecidos como devidos, com o respectivo reconhecimento, pela contabilidade, de que esses adiantamentos passaram a constituir receita da empresa.

Pensar diferente é, ao mesmo tempo, embaralhar os regimes de competência e de caixa, transmudar o IBS e a CBS em tributos sobre transações financeiras e permitir a cobrança de tributo antes da ocorrência do respectivo fato gerador. Por tudo isso, esse dispositivo merece imediata revisão — seja pelo Parlamento, seja, no limite, pelo Poder Judiciário.

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