Risco é um componente essencial nas decisões humanas. Empresas escolhem estratégias, e.g. contratam seguros ou investem em prevenção de acidentes, em função do risco a que são expostas. Há, contudo, um risco contra o qual seu espaço de ação é muito limitado. É o risco de mudanças das regras do jogo ou do modo como essas são aplicadas com o jogo em andamento.
Este problema – sim, é um problema – é muitas vezes denominado insegurança jurídica. Para entender seus impactos, vamos começar com uma analogia: imagine uma partida de futebol que começa normalmente. Logo após o início do jogo, o árbitro anuncia mudanças nas regras: primeiro, cada time passa a poder ter apenas oito jogadores; depois, decide que o jogo terá três tempos de 30 minutos; em seguida, indica que os jogadores podem usar as mãos para jogar; logo em seguida, aponta que o jogo volta ao formato tradicional; e não há sinais que as mudanças nas regras vão acabar. Pior, não há possibilidade de contestação: todas as decisões dependem exclusivamente da vontade do árbitro. É claro que, nesse cenário, as equipes não têm mais incentivo para se prepararem para o jogo (aliás, qual jogo?). Retornando da analogia futebolística para a economia, quando as regras ou sua interpretação podem ser alteradas de forma imprevisível, os atores econômicos trocam o investimento, ou seja, a construção do futuro, pela proteção aos azares do presente. E todos nós saímos perdendo.
Para Douglass North, Prêmio Nobel de Economia e pioneiro da Nova Economia Institucional, as “regras do jogo” na sociedade são as instituições (leis, decisões judiciais, normas instituídas), que atuam como restrições para moldar as interações humanas. Essas instituições estruturam os incentivos nas trocas políticas, sociais e econômicas, e influenciam o desenvolvimento das sociedades ao longo do tempo. Sem regras claras e previsíveis, as pessoas evitam tomar decisões por medo de violar normas social ou legalmente aceitas. Nesse contexto, a máxima “melhores leis ruins do que leis incertas” ganha relevância. Outro laureado, Daniel Kahneman, em companhia de Cass Sunstein e Olivier Sibony, no livro ‘Ruído’[1], mostram que o problema da imprevisibilidade das decisões judiciais é mais disseminado e pernicioso do que o seu viés contra ou a favor de alguém. É mais fácil se proteger de um viés conhecido do que daquilo que é imprevisível.
A falta de segurança jurídica e previsibilidade nas decisões judiciais não é uma preocupação exclusiva de economistas, mas um problema que cada vez mais vem sendo discutido por magistrados, juristas, empresários, consumidores, cidadãos. Muitas podem ser as causas que a explicam, incluindo a má qualidade das leis criadas, o “vácuo” legislativo e normativo deixado pelos outros Poderes, a instabilidade com normas legais frequentemente alteradas, a tradição do direito civil, a burocracia processual excessiva que permite múltiplos recursos e apelações, entre outros. Recentemente, também se têm apontado outras duas importantes causas: a proliferação intensa de normas que acabam se contradizendo e a postura de alguns magistrados que ultrapassam o papel de intérpretes da lei para atuarem como legisladores. No limite, a insegurança jurídica transforma a Justiça em uma grande loteria. Esse fato, somado ao livre acesso ao Judiciário, gera incentivos para que qualquer um, mesmo aqueles que não tenham direito legítimo a reclamar, acione a justiça – afinal, “nunca se sabe, pode ser que se ganhe…” Talvez isso explique os mais de 80 milhões de processos existentes no Judiciário brasileiro nesse momento (Justiça em Números, CNJ, 2024).
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Infelizmente, ao que tudo indica a insegurança jurídica no Brasil é muito elevada. Ainda é desafio acadêmico e de políticas públicas conseguir medi-la de maneira precisa, mas isso poderia (e deveria) ser feito de várias formas, explorando as várias facetas da insegurança jurídica. Somente a título de um pequeno exemplo, um estudo analisando 1.789 Recursos Especiais julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) revelou que 54,3% das decisões da corte reformaram total ou parcialmente as decisões dos tribunais estaduais (Yeung, 2010). Isso demonstra que há uma significativa variação de decisões entre instâncias para um mesmo caso, comprometendo a previsibilidade jurídica. Outras vezes, há, na mesma instância, decisões diametralmente opostas para casos semelhantes, variando de acordo com o juiz, ou até para um mesmo juiz, conforme o seu grau de exposição a elementos que não fazem parte dos autos, como matérias da imprensa ou experiências pessoais. São muitas as possibilidades de medidas quantitativas que podem explorar as diversas faces da insegurança jurídica, mas é razoável admitir que dificilmente uma única medida daria conta da amplitude do fenômeno.
Uma alternativa factível de mensuração é um indicador de percepção por parte dos atores econômicos, com a virtude de permitir capturar informações nem sempre observáveis e quantificáveis pelo analista. Essa foi a opção escolhida pelo JOTA, ao propor o Indicador de Segurança Jurídica, construído a partir de um questionário aplicado junto a uma amostra de atores-chave. O método é semelhante ao empregado pelo já consagrado Índice de Percepção de Corrupção, desenvolvido pela Transparência Internacional, que o compila anualmente para diversos países. Como qualquer medida de percepção, não se trata de uma avaliação direta da realidade, mas da agregação das interpretações de diversas pessoas que observam fragmentos da realidade. Sua maior virtude está justamente em traduzir de modo holístico uma percepção média dos diversos atores. Finalmente teremos uma medida para a segurança jurídica, com o potencial de orientar políticas públicas e abrir caminho para estudos acadêmicos.
A redução da insegurança jurídica é crucial para garantir que indivíduos, organizações e empresas possam tomar decisões seguras sobre seus investimentos e operações. Além disso, a previsibilidade jurídica permite que a sociedade enfrente de forma mais eficiente os enormes desafios trazidos pelas inovações tecnológicas e pelas novas relações sociais, que são avassaladores no ambiente de trabalho e nos mercados. Daí a urgência e relevância de uma agenda para mensuração da segurança jurídica, abrindo espaço para avaliar e corrigir políticas públicas voltadas a garantir maior previsibilidade às regras do jogo.
[1] KAHNEMAN, Daniel; SIBONY, Olivier; SUNSTEIN, Cass R. Ruído: uma falha no julgamento humano. Objetiva, 2021.