O Brasil possui um potencial significativo para a condução de ensaios clínicos, como defendido por diversas fontes. Esse potencial foi reconhecido e consolidado com a aprovação da Lei nº 14.874/2024, que regulamenta a pesquisa com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Ao longo dos 26 anos de atuação da Anvisa na área de pesquisas clínicas, foram alcançados avanços notáveis na regulação, com diretrizes convergentes aos padrões adotados por países de referência em ensaios clínicos. Apesar desses progressos, que segundo o IQVIA, posicionam o Brasil na 19ª colocação no ranking global de condução de pesquisas clínicas, ainda persistem desafios estruturais que impactam negativamente na eficiência e no número de estudos realizados no país.
Tempo para o início dos ensaios clínicos após a aprovação da Anvisa
Uma das questões a ser enfrentada pelo ecossistema de inovação no Brasil é a redução do tempo necessário para o início dos ensaios clínicos e a diminuição da taxa de desistências protocoladas na Anvisa. Segundo o relatório de 2023, publicado pela área de pesquisa clínica de medicamentos da Anvisa (COPEC), os patrocinadores devem informar à Anvisa as datas de início e término dos ensaios clínicos em até 30 dias corridos após cada evento. Entretanto, os dados mostram que aproximadamente 60% dos ensaios clínicos autorizados pela Anvisa são iniciados apenas após seis meses da aprovação regulatória. Dentre os 142 ensaios clínicos que demoraram mais de 180 dias para iniciar, 54 passaram por análise prioritária; contudo, somente 4 dos 90 ensaios clínicos priorizados foram iniciados no período de 1 a 60 dias após a aprovação da Anvisa. Esse cenário levanta questionamentos sobre o esforço administrativo e técnico despendido pela Agência em processos priorizados que, mesmo assim, não resultam em um início ágil dos ensaios. Os dados de 2024, ainda não divulgados pela Agência, indicam que essa situação persiste.
Os prazos para início dos ensaios clínicos após autorização da Anvisa podem variar em função de outros fatores e providências que precisam ser tomadas pelos patrocinadores, para criar as condições necessárias para iniciar o recrutamento dos participantes dos ensaios clínicos. Soma-se ainda o fato de, mesmo após a autorização da Anvisa, os ensaios clínicos só poderem ser iniciados após autorização da instância ética.
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A atualização regulatória promovida pela RDC nº 945/2024, que estabelece que a Anvisa emitirá, em até 30 dias úteis após o protocolo do Dossiê Específico do Ensaio Clínico (DEEC), o documento de importação ou exportação de produtos sob investigação, promove maior agilidade. Essa flexibilização regulatória, demandada pelo setor regulado, promete acelerar o início dos ensaios clínicos, uma vez que anteriormente os trâmites de importação só podiam ser iniciados após a publicação da decisão de avaliação da Anvisa.
Cancelamentos e Desistências dos Ensaios Clínicos no Brasil
Outro ponto relevante são os principais motivos para cancelamentos e desistências de ensaios clínicos no Brasil, incluindo mudança de estratégia do patrocinador (32% e 57%, respectivamente), dificuldades no recrutamento de participantes (23%) e mudanças no cenário epidemiológico (11%). Durante a pandemia de COVID-19, por exemplo, a rápida evolução do cenário levou ao cancelamento de diversos estudos, especialmente diante do avanço da vacinação e da circulação de novas variantes do SARS-CoV-2.
A análise dos dados e das justificativas dos patrocinadores para cancelamentos e desistências oferece insights valiosos sobre os obstáculos enfrentados no desenvolvimento de novas terapias. Entender melhor essas informações e números, juntamente, com uma comparação com padrões internacionais pode auxiliar na identificação de melhorias e na competitividade do Brasil no cenário global de ensaios clínicos, para fins de reduzir os números dos cancelamentos e desistência da condução de ensaios clínicos no país, mesmo após a aprovação da Anvisa.
Estudos Clínicos Descentralizados
O recrutamento de participantes é um dos grandes desafios enfrentados, especialmente em estudos de doenças raras ou em regiões com infraestrutura limitada. A adoção de ensaios clínicos descentralizados surge como uma abordagem inovadora, capaz de promover maior acessibilidade e equidade, permitindo a inclusão de pacientes que enfrentam barreiras geográficas ou dificuldades de mobilidade. Essa metodologia contribui para a diversificação demográfica dos participantes, essencial para a validade e aplicabilidade dos resultados clínicos.
Essa questão é foco de debate no Conselho Internacional para Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos de Uso Humano (ICH), que desenvolve diretrizes adicionais sobre ensaios clínicos não tradicionais, como os estudos descentralizados, por meio do guia E6(R3). Autoridades como a FDA (Estados Unidos), Health Canada, EMA (Europa), Swissmedic (Suíça), AEMPS (Espanha) e TFDA (Taiwan) já publicaram diretrizes para implementação de elementos descentralizados em ensaios clínicos.
Outros Pontos
Além disso, promover um diálogo contínuo entre reguladores, comitês de ética, pesquisadores e patrocinadores é essencial para fortalecer a confiança e colaboração no ecossistema de pesquisa clínica. Medidas de fomento e investimento por parte do governo são igualmente importantes para criar um ambiente favorável à realização de ensaios clínicos com fins de registro de medicamentos no Brasil, considerando os diferentes modelos internacionais.
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Outros países têm se destacado na modernização de seus ecossistemas de pesquisa clínica. Conforme publicado pela Pharma Boardroom, a Dinamarca, por exemplo, estabeleceu um plano para fortalecer sua posição em ciências da vida até 2030. A Polônia, por meio da Agência de Pesquisa Médica (MRA), reformulou seu ambiente regulatório desde 2019, oferecendo programas para capacitar pesquisadores em diversas áreas. A Alemanha, apesar do declínio nos ensaios clínicos entre 2018 e 2023, busca recuperar competitividade com a nova Lei de Pesquisa Médica (MRA), enquanto a República Tcheca conseguiu um aumento significativo de estudos de medicamentos contra o câncer em 2023, com sua grande rede de hospitais públicos, bem como centros especializados para a condução de pesquisas clínicas.
No Brasil, além das ações públicas, o setor privado tem um papel crucial na melhoria do atual cenário, por meio de parcerias com universidades e instituições de saúde. Essas colaborações podem fortalecer a infraestrutura do país e promover inovações tecnológicas, como a adoção de ferramentas digitais e metodologias descentralizadas.
A Anvisa, por sua vez, ainda possui oportunidades de otimizar seus processos, como a automação e modernização dos sistemas de avaliação do Dossiê de Desenvolvimento Clínico de Medicamento (DDCM). A priorização da análise baseada em riscos e o aprimoramento da capacidade de monitoramento são essenciais para reduzir os prazos de aprovação, como já acontece em países com alta competitividade nas pesquisas clínicas. Além dessas melhorias, é necessário fortalecer os recursos humanos da Agência para manter a qualidade e a eficácia das pesquisas clínicas no país. Esse ponto também foi abordado no recente artigo “Um roteiro para promover aprovações regulatórias e éticas oportunas de ensaios clínicos internacionais em apoio aos sistemas globais de pesquisa em saúde”, publicado na The Lancet, com a participação do Coordenador da COPEC da Anvisa, como um dos autores.
Uma medida estratégica que merece discussão é a criação de um sistema único de submissão para ensaios clínicos destinados ao registro de medicamentos, integrando a submissão de documentos tanto para a Anvisa quanto para o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Embora as análises regulatórias e éticas devam continuar de forma independente, a criação de um portal único simplificaria o processo, promovendo mais transparência e agilidade.
A implementação desse sistema integrado, respeitando as competências exclusivas de cada autoridade, não só facilitaria o monitoramento contínuo dos ensaios clínicos, mas também contribuiria para as inspeções de Boas Práticas Clínicas (BPC), centralizando informações e tornando-as acessíveis para auditorias e verificações quando necessário. Essa abordagem, alinhada com as estratégias internacionais, promoveria um ambiente regulatório mais eficiente e transparente, reduzindo a fragmentação e os tempos de aprovação dos ensaios clínicos.
Em síntese, o fortalecimento do ecossistema de ensaios clínicos no Brasil depende de iniciativas coordenadas entre o setor público, privado e as instituições de pesquisa. A implementação de medidas que promovam maior agilidade, transparência e integração dos processos regulatórios, como a criação de um sistema único de submissão e a modernização das ferramentas de avaliação, são essenciais para colocar o Brasil em uma posição de destaque no cenário global de pesquisa clínica. Além disso, a colaboração contínua entre todos os envolvidos, juntamente com o investimento em inovação e capacitação, será fundamental para superar os desafios atuais e acelerar o acesso da população brasileira a novas terapias e tecnologias.