Os sistemas de processo eletrônico são a causa do golpe do falso advogado?

O golpe do falso advogado não pode ser reduzido a uma mera questão de desatenção das vítimas ou de falta de informação. O que precisa ser analisado com profundidade é por que esses golpes passaram a ocorrer com tanta frequência e sofisticação nos últimos anos, quais mudanças tecnológicas e institucionais viabilizaram esse cenário e se os próprios tribunais têm reconhecido o impacto de seus sistemas eletrônicos na facilitação dessas fraudes.

A digitalização dos processos trouxe inúmeros avanços, mas também eliminou barreiras naturais de acesso às informações judiciais. O que antes exigia comparecimento presencial a um cartório judicial, hoje pode ser acessado com poucos cliques, muitas vezes sem qualquer autenticação. Esse novo cenário não apenas transformou a dinâmica do processo judicial, mas também abriu caminho para a exploração indiscriminada de dados por terceiros, incluindo golpistas que se apropriam dessas informações para práticas criminosas.

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Diante desse problema, realizamos entre janeiro e março de 2025 uma série de pedidos de acesso à informação ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e ao Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (TRT12). O objetivo era compreender se os próprios tribunais do estado de Santa Catarina reconhecem que a forma como estruturam seus sistemas eletrônicos pode estar viabilizando golpes e se alguma providência concreta tem sido adotada para mitigar esse risco.

As respostas foram, no mínimo, preocupantes. O TJSC, ao ser questionado sobre a possibilidade de limitar a indexação de informações processuais por plataformas como Jusbrasil e Escavador, foi taxativo: não há qualquer investigação ou medida administrativa em andamento para tratar desse tema.

Também informou que não realiza estudos ou levantamentos sobre o impacto do amplo acesso a informações processuais na ocorrência de fraudes e que não há iniciativas para restringir o acesso a dados sensíveis de forma que impeça sua exploração por estelionatários. O tribunal afirmou que realiza auditorias para monitorar o uso inadequado do sistema eproc, mas não especificou quais mecanismos concretos são empregados para evitar acessos indevidos[1].

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A resposta do TRT12 segue a mesma linha. O tribunal esclareceu que não possui controle ou monitoramento sobre ferramentas externas que acessam ou integram dados processuais e que não há qualquer estudo ou proposta em andamento para restringir o acesso a informações sensíveis do PJe. A única medida mencionada refere-se ao uso de ferramentas cibernéticas para impedir consultas automatizadas por robôs, mas nada foi indicado sobre o uso massivo dos dados por pessoas que acessam processos de forma sistemática e suspeita[2].

O TRF4, por sua vez, reconheceu que não há qualquer restrição sobre a indexação de processos judiciais, exceto em relação a precatórios e RPVs, que foram recentemente protegidos por novas regras. No mais, o tribunal admitiu não dispor de mecanismos para rastrear se as informações obtidas por advogados ou terceiros estão sendo utilizadas de maneira indevida e afirmou que não possui instrumentos para auditar com eficiência os acessos realizados.

Além disso, destacou que não há qualquer normativo que autorize restrições adicionais ao acesso público das informações processuais, evidenciando que o problema sequer tem sido tratado no âmbito da Justiça Federal como uma preocupação prioritária[3].

Essas respostas demonstram uma ausência de medidas institucionais para coibir a exploração indevida das informações processuais. O que os tribunais revelam, ainda que indiretamente, é que não existe uma política estruturada para evitar que seus próprios sistemas sejam instrumentalizados por fraudadores. Isso levanta um questionamento inevitável: qual o limite da publicidade processual e como ela pode coexistir com mecanismos de proteção contra fraudes?

Curiosamente, muitos órgãos públicos já adotaram medidas de segurança para dificultar o acesso indiscriminado a informações sensíveis. O próprio TJSC exige que o interessado forneça seu nome e CPF para consultar a remuneração de seus servidores públicos, incluindo magistrados. Mas quando se trata dos sistemas de processo eletrônico, essa exigência inexiste.

Como inexistem gradações no nível de publicidade e transparência das informações públicas, indaga-se por que um cidadão precisa se identificar para consultar a remuneração de um juiz, mas não para acessar o valor da causa, as partes e o andamento detalhado de um processo judicial? No caso do processo judicial, o acesso público possibilita inclusive a consulta a informações privadas e sensíveis, protegidas pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Embora não se cogite restringir a publicidade do processo judicial, é fundamental que o acesso aos processos judiciais seja transparente e passível de responsabilização em caso de utilização indevida (e criminosa) dos dados neles contidos. O acesso deve permanecer livre, mas é essencial que seja registrado quem acessou, de onde e em que circunstâncias, permitindo que eventuais usos indevidos possam ser investigados.

Se a informação processual deve ser pública, isso não significa que ela possa ser acessada de forma anônima e indiscriminada, sem qualquer mecanismo de rastreamento. A adoção de ferramentas que possibilitem a auditoria e identificação da origem das consultas é um caminho necessário para proteger advogados, partes e o próprio sistema judicial de práticas abusivas.

O impacto desse acesso irrestrito não se restringe aos golpes contra clientes de advogados. Notoriamente há um mercado paralelo de comercialização de informações processuais, em que dados são coletados, organizados e revendidos, muitas vezes sem que as partes envolvidas tenham qualquer controle sobre o que está sendo feito com suas informações. Isso cria um ambiente propício para fraudes e outras práticas que comprometem a integridade do sistema.

O enfrentamento dessa crise exige medidas concretas e um debate aprofundado. Não há solução simples para um problema tão complexo, e sabemos que qualquer alteração nos sistemas de processo eletrônico pode gerar consequências não previstas.

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No entanto, considerando a proliferação de crimes virtuais proporcionados pela facilidade com que diversas informações são obtidas em simples consultas processuais, é evidente que a forma como os dados processuais são expostos nos sistemas do Poder Judiciário precisa ser revista. Nossa proposta não é apresentar respostas definitivas, mas provocar uma reflexão necessária e urgente sobre os riscos que decorrem da ausência de mecanismos de proteção e responsabilização no acesso a essas informações.

Entre as possibilidades que podem ser consideradas, acreditamos que a autenticação obrigatória para consultas processuais seria um primeiro passo, garantindo que cada acesso seja registrado e possa ser auditado. Isso não restringiria o direito de acesso à informação, mas permitiria a identificação da origem das consultas, coibindo usos indevidos.

Além disso, a proibição da indexação automatizada de processos por robôs evitaria que plataformas externas explorassem comercialmente informações judiciais, muitas vezes sem qualquer controle. Outra medida essencial seria a revisão da Resolução CNJ 455/2022, especialmente no que se refere ao Relatório de Distribuição, que pode estar facilitando a prática de fraudes ao expor dados sensíveis de processos e advogados.

É importante registrar, ainda, que o direito à proteção dos dados pessoais foi erigido à condição de garantia constitucional (artigo 5º, inciso LXXIX), por meio da Emenda Constitucional 115, de modo que é possível constatar um aparente conflito entre os princípios fundamentais da privacidade e da publicidade dos processos judiciais.

Diante disso, a relação entre a LGPD e o acesso indiscriminado a informações processuais também precisa ser aprofundada na medida em que a falta de controle no acesso aos dados processuais está viabilizando a prática de crimes, prejudicando a atuação de advogados e diminuindo a confiança da população no Poder Judiciário.

A publicidade processual é um princípio constitucional, mas isso não significa que todas as informações devam estar abertas ao público sem qualquer salvaguarda contra abusos. A LGPD estabelece princípios como finalidade, necessidade e segurança, que parecem não estar sendo adequadamente observados na forma como os dados processuais são disponibilizados pelos tribunais brasileiros.

Ademais, os dados pessoais dos advogados e das partes não estão dentre as hipóteses de tratamento de dados pessoais previstas na LGPD (artigo 7º), reforçando a possibilidade de que o advogado possa não consentir com o compartilhamento de suas informações privadas. Nesses casos, os Tribunais de Justiça que desempenham o papel de controladores dos referidos dados deverão atuar de modo a conciliar a publicidade dos processos judiciais com os princípios previstos na LGPD.

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Em vista disso, a adoção de procedimentos de segurança e identificação mais avançados nas consultas públicas podem representar importantes salvaguardas preventivas no acesso a dados processuais, auxiliando no combate à utilização indevida e golpes financeiros aplicados em face de advogados e jurisdicionados.  

A transparência do Judiciário é fundamental para o Estado Democrático de Direito, mas precisa ser equilibrada com medidas de proteção e segurança. Não se trata de ocultar informações, mas de garantir que a forma como elas são acessadas não favoreça práticas ilícitas e não coloque em risco advogados, partes e o próprio sistema de justiça.

O que propomos é um debate responsável e pragmático: se há um problema evidente, o mínimo que se espera é que ele seja discutido e enfrentado. Não podemos continuar ignorando. A proteção de dados e a segurança da informação devem ser tratadas com a mesma seriedade com que se discute a transparência processual, pois não há democracia sem um equilíbrio adequado entre acesso à informação e a confiança nas instituições.


[1] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA. Resposta à consulta formulada por meio da Ouvidoria nº OPJ-2025-000188-12. Processo SEI nº 0010689-93.2025.8.24.0710. Interessado: Eduardo Baldissera Carvalho Salles. Florianópolis, 18 mar. 2025. Disponível em: http://sei.tjsc.jus.br/verificacao. Código verificador: 9166774. Código CRC: 40D2099E. Acesso em: 18 mar. 2025.

[2] TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 12ª REGIÃO. Resposta ao Pedido de Informação nº PROAD 943/2025. Interessado: Eduardo Baldissera Carvalho Salles. Florianópolis, 6 fev. 2025. Disponível em: https://proad.trt12.jus.br/proad/pages/consultadocumento.xhtml. Código de autenticação: 2025.HPNS.ZRGM. Acesso em: 20 mar. 2025.

[3] TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO. Resposta ao Pedido de Informação – Ouvidoria nº 7620565. Interessado: Eduardo Baldissera Carvalho Salles. Florianópolis, 29 jan. 2025. Disponível via e-mail.

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