Quando a maré vira, não adianta remar do mesmo jeito

Uma nova ordem pode estar em curso no campo das políticas digitais.[1] Não se trata apenas de uma mudança no eixo político dos Estados Unidos, mas de uma inflexão estratégica na aliança entre a Casa Branca e o Vale do Silício simbolizada pela aproximação entre o Executivo federal e as principais lideranças do setor de tecnologia.

Observar e interpretar essa reorientação é fundamental para o debate estratégico brasileiro sobre a proteção dos direitos de seus cidadãos, de seus caminhos de desenvolvimento econômico e da aplicação de sua jurisdição. Em suma, faz sentido entender a mudança das marés para saber como — e para onde — remar.

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Durante anos, o debate brasileiro sobre políticas digitais teve como pressuposto a existência de um alinhamento geopolítico entre Estados Unidos e União Europeia. Em muitos casos, era um dado da paisagem projetada no fundo da discussão e aprovação do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), os casos relevantes no Supremo Tribunal Federal (STF) e em outras instâncias. Após uma década de estabilidade, a imagem projetada ao fundo mudou.

Entre disputas e convergências sobre o significado e os efeitos das medidas adotadas por estadunidenses e europeus, o seu alinhamento sustentou um mínimo múltiplo comum: a necessidade de algum grau de controle sobre o ambiente e a economia digitais, ainda que por caminhos distintos.

Foi notável a capacidade transatlântica de construir uma agenda, negociar, aprovar e iniciar a implementação de grandes empreendimentos regulatórios, notadamente o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA) europeus. Esses marcos, acompanhados da abertura de investigações concorrenciais em face de empresas de tecnologia nos dois lados do oceano, delimitaram acordo sobre a coexistência de princípios de direitos humanos e defesa da concorrência, de um lado, e diretrizes de mercado, de outro.

O horizonte estratégico comum e a sinergia revelaram-se em uma série de casos. Na questão concorrencial, por exemplo, governos europeus aproveitavam-se de uma postura crítica de Washington em relação às empresas de tecnologia, tracionando a montagem do DMA.

Como face da mesma moeda, a doutrina europeia criou parte da justificação das iniciativas antitruste levadas adiante pelo FTC e pelo DOJ ao longo dos últimos quatro anos. Do mesmo modo, diferentes arranjos de coalizões na política doméstica de cada jurisdição expressaram uma demanda crescente por maior regulação das interseções entre vida social e espaço digital.

Esse movimento foi suportado, de um lado, nas maiorias parlamentares que sustentaram a agenda regulatória europeia; de outro, no apoio bipartidário nos Estados Unidos — ainda que fundado em racionalidades muitas vezes divergentes ou mesmo antagônicas — à ampliação de accountability sobre o poder econômico e comunicacional das grandes plataformas.

Esse cenário configurava uma espécie de “ordem” nas políticas digitais, sustentada por acomodações estratégicas e atravessada por tensões institucionais persistentes. Neste quadro, as lideranças do Vale do Silício optaram por uma estratégia de assimilação seletiva. No caso do DSA, por exemplo, não levaram o confronto aberto à medidas extremas de resistência, aceitando o avanço regulatório europeu como um custo inevitável para a preservação do acesso a esse mercado relevante.

O campo brasileiro das políticas digitais floresceu nesta paisagem, tomando por referencial tanto os avanços normativos europeus como os argumentos e casos estadunidenses. Assim, o recuo dos Estados Unidos desse pacto informal gera um ruído que afeta o Brasil. O ponto é: como afeta e qual a estratégia a partir daí?

Uma das maiores economias em desenvolvimento do planeta e protagonista de uma periferia relativa para o espaço de políticas digitais, o Brasil é uma das jurisdições com maior capacidade de assimilação e geração de políticas próprias neste novo estado de coisas.

Dada a complexidade dos incentivos, interesses, capacidades institucionais e estratégias dos diferentes atores envolvidos, o novo cenário impõe ao Brasil contradições e desafios sistêmicos ainda mais profundos no campo das políticas digitais. O que antes era caracterizado por mecanismos de acomodação e negociação normativa entre plataformas e Estados nacionais passa agora a ser substituído por uma lógica de confrontação com guarida geopolítica.

Como veremos, o cenário aponta a relevância da gramática econômica dos conflitos e da discussão sobre governança, na esteira do acirramento do conflito entre jurisdições.

O Brasil se insere nesse contexto a partir de uma estrutura regulatória marcada pela fragmentação. A persistente disputa de um plano estruturante de governança digital resulta na coexistência de múltiplas agendas sobrepostas — abrangendo temas como moderação de conteúdo, inteligência artificial, proteção infantil, concorrência, mercado de trabalho, privacidade e proteção de dados e sustentabilidade do jornalismo — que operam com lógicas próprias, sem coordenação centralizada.

Ademais, a disputa simbólica em torno de conceitos como censura e liberdade de expressão acirra a polarização e dificulta o avanço de propostas consistentes e com visão estratégica, o que se agrava quando observada a pulverização político-ideológica que impede a formação de maiorias estáveis no espaço legislativo.

A mudança de contexto precisa ser compreendida como uma janela crítica. A fadiga do modelo anterior, baseado na “new governance” e em mecanismos de due diligence, regulação responsiva e multissetorial, obriga o Brasil a operar sem o suporte de um arcabouço político externo mais estável. A dinâmica atual impõe a necessidade de formulação endógena de instrumentos de governança a partir de seus recursos institucionais próprios e de uma avaliação realista das capacidades administrativas e políticas disponíveis.

Ao mesmo tempo, há uma mudança na gramática que estrutura o debate internacional. A retórica da liberdade de expressão, anteriormente mobilizada para ampliar espaços de regulação compartilhada, passa a ser reinterpretada como ferramenta de proteção de mercado. Regulações nacionais começam a ser enquadradas como barreiras comerciais, princípios jurídicos passam a ser tratados como tarifas, e vice-versa.

Essa transformação discursiva tem efeitos concretos sobre a atuação internacional das plataformas e sobre os espaços de manobra regulatória dos estados. O novo enquadramento pode trazer debates (e resistências) sobre a regulação de mercados digitais para o centro da arena política, deslocando ou recolocando outras agendas.

Ainda, neste novo capítulo que se abre, a construção de uma estrutura de governança para o digital se torna estratégica em todas as frentes regulatórias, sejam elas de mercados ou de serviços digitais. A afirmação da jurisdição e das capacidades de aplicação da lei são corolário do viés de alta da ideia de soberania digital.

Compreender essas tendências pode indicar que determinados debates — como o que envolveu o fatídico PL 2630/2020, conhecido como PL das Fake News — devem ser vistos “de ponta cabeça”. Por anos, “deveres de cuidado” e obrigações de transparência foram o foco de minuciosas discussões enquanto o debate relacionado a quem seria a instância de fiscalização e supervisão ficava para a final, com interrogações.

De modo análogo, no campo de mercados digitais, discussões relacionadas às limitações nos objetivos da política, à identificação específica de falhas de mercado ou sobre a natureza de determinadas teorias do dano se sobrepuseram aos debates sobre os desafios de geração e formação de capacidade institucional para a construção de uma visão mais transversal e baseada na necessidade de contestabilidade destes mercados.

Este novo paradigma sugere que devemos nos debruçar urgentemente sobre estas interrogações que ficaram tempos sem atenção, cientes das capacidades e incapacidades das estruturas disponíveis, para a necessidade de valorização da expertise, da participação social e da autonomia frente à captura política e pelo poder econômico.

Diante de um cenário global em transformação, devemos avançar a partir de maior abertura à coordenação e ao diálogo entre diferentes gramáticas, formulando e implementando programas e ações mínimos com o objetivo de dotar o Estado brasileiro de capacidade coordenada de regulação, condição central para sua inserção soberana nas disputas no campo das políticas digitais.


[1] “Políticas digitais” aqui aparece como a versão brasileira do correspondente tech policy, em inglês. O conceito delimita o campo dentro do qual decisões sobre tais tecnologias tomadas por empresas e instituições são tomadas, debatidas, reguladas, analisadas e disputadas.

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