Alerta de spoiler: vocês sabiam que a inteligência artificial generativa possui capacidade para antever futuras posições sociais suas? Classificá-los como mais ou menos gentis, indicar se vocês terão ou não condições de suportar a compra de um apartamento ou até mesmo se serão capazes de criar adequadamente filho e/ou pets?
Não, senhores. Não estamos todos vivendo no episódio “Nosedive” da série britânica Black Mirror – aquele em que uma mulher se vê numa insana jornada para melhorar seu handicap de avaliação (estrelinhas) atribuído por seguidores em uma rede social “oficial” e assim ter a oportunidade de morar em um local melhor –, mas o fato objetivo é que antes da Resolução 615 do CNJ sobre a utilização de ferramentas de inteligência artificial pelo Judiciário, julgamentos proferidos no Brasil com o uso de robôs poderiam, sim, estar condicionados à elementos íntimos das partes, quebrando assim a indispensável imparcialidade de julgamento.
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A necessária regulação pelo CNJ sobre o uso de IA pelo Judiciário tem por premissa insuperável o prestígio de garantias fundamentais do processo asseguradas pela Constituição, especialmente a dignidade humana, a presunção de inocência, o devido processo legal e o direito à intimidade.
Como principais avanços da Resolução 615 podemos destacar (i) a transparência na utilização de IA e supervisão humana indispensável, (ii) aderência de regulamentação às normas vigentes de LGPD com o consequente respeito à intimidade e privacidade das partes, (iii) preservação da igualdade e vedação de discriminações ilegais e abusivas produzidas por algoritmos, (iv) a criação do Comitê Nacional de Inteligência Artificial do Poder Judiciário, como órgão independente e fiscalizador de observância às normas regulamentares de aplicação da IA em demandas judiciais.
Pela Resolução 615, ficam vedados o desenvolvimento e utilização de ferramentas tecnológicas que não possibilitem a revisão humana dos resultados propostos ao longo de seu ciclo de treinamento, desenvolvimento e uso; que valorem traços da personalidade, características ou comportamentos de pessoas naturais ou de grupos de pessoas naturais, para fins de avaliar ou prever o cometimento de crimes; ou a probabilidade de reiteração delitiva na fundamentação de decisões judiciais, bem como para fins preditivos ou estatísticos com o propósito de fundamentar decisões em matéria trabalhista a partir da formulação de perfis pessoais e que classifiquem ou ranqueiem pessoas naturais, com base no seu comportamento, situação social ou atributos da sua personalidade, para a avaliação da plausibilidade de seus direitos, méritos judiciais ou testemunhos.
Como nota de preocupação, destacamos que, não obstante à criação do comitê nacional, a Resolução 615 abre portas para iniciativas isoladas de cada tribunal. Tal situação permitirá, em nossa avaliação, que jurisdicionados promovam ilegítimas escolhas de foro em violação ao juízo natural, além de permitir que, inconstitucionalmente, regras de impacto processual não possuam abrangência nacional.
Como exemplo, basta observarmos a verdadeira torre de babel existente junto aos órgãos do Judiciário pela coexistencia não pacífica de dezenas de plataformas de gestão processual que não se comunicam entre si e vulneram a efetividade de tutela jurisdicional.